O Supremo Tribunal Federal (STF), nesta quinta-feira (23/5), julgou procedentes os pedidos que pedem a proibição de questionamentos sobre a vida sexual pregressa da vítima e seu modo de vida durante a apuração e o julgamento de crimes contra a dignidade sexual.
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Por unanimidade, o Tribunal acompanhou o entendimento da relatora, ministra Cármen Lúcia. O caso foi analisado na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 1.107, ajuizada pela Procuradoria-Geral da República (PGR).
Os ministros fixaram a tese de que é inconstitucional a prática de desqualificar a mulher vítima de violência durante a instrução e o julgamento de crimes contra a dignidade sexual e também de demais crimes de violência contra a mulher, englobando também casos de violência doméstica e política.
Fica vedada, então, eventual menção, inquirição ou fundamentação sobre a vida sexual pregressa ou ao modo de vida da vítima em audiências e decisões judiciais.
Voto da relatora
Na leitura de seu voto, na tarde da última quarta-feira (22/5), a ministra Cármen Lúcia afirmou que é comum que, nas audiências, a vida pregressa da vítima e seus hábitos sexuais sejam utilizados como elementos para justificar a conduta do agressor.
”Nós temos uma sociedade que, para que a gente tenha efetividade jurídica e social, é preciso que haja realmente o princípio de igualdade. E nesse sentido, vem a necessidade de se evitar a vitimização secundária e a ofensa a direitos fundamentais”, afirmou.
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A ministra destacou a luta das mulheres pela emancipação e igualdade, e para serem reconhecidas como seres livres, com suas vontades, desejos, bem como autonomia para decidir.
Reiterou que, na história da evolução humana, a condição da mulher e os corpos femininos foram utilizados pelos homens como objetos segundo as conveniências, interesses, voluntarismo de toda a natureza. Pontuou que a evolução normativa, no entanto, é marcada por conquistas graduais e igualitárias, ”como deveria ser”.
Cármen Lúcia também destacou que, mesmo entre as mulheres, há uma diferença no tratamento e valor, observadas entre brancas e negras, principalmente por meio das condições socioeconômicas que demarcam ”todo tipo de perversidade praticada”.
A ministra fez uma análise histórica sobre a mulher nas sociedades de classes no Brasil ao longo dos últimos anos, avaliando o modo como no próprio Direito brasileiro o reconhecimento da violência sexual se diferia em casos em que a mulher era uma ”escrava”, ”prostituta”, ou considerada pelos julgadores como ”honesta”. Nestes casos, a ministra enfatiza que há uma relativização da violência e da penalidade aplicada aos agressores.
Assim, ressaltou que apesar da evolução legal e constitucional, o Estado e a sociedade brasileira continuam aceitando a discriminação e a violência de gênero contra as mulheres, exatamente na apuração e judicialização dos atentados contra elas e, em especial, nos crimes de dignidade.
Os demais ministros acompanharam integralmente o voto da relatora. Ao se manifestar, Dias Toffoli afirmou que este seria um voto para a história do Supremo e que este é um dos temas mais preocupantes da sociedade brasileira.
Na sessão desta quinta-feira, o ministro Luiz Fux lembrou trechos do julgamento do caso de violência sexual contra a influenciadora Mariana Ferrer, que ensejou o debate sobre revitimização. Segundo Fux, durante uma audiência, o juiz do caso não se manifestou quando o advogado da outra parte questionou fotos sensuais da vítima postadas nas redes sociais e afirmou que jamais teria uma filha do “nível” dela.
Alterações
Na sessão desta quinta-feira, o ministro Flávio Dino sugeriu duas mudanças, que foram prontamente incorporadas, ao voto da ministra. A primeira diz respeito ao trecho do voto que prevê a nulidade do processo em que há revitimização da mulher. Dino sugeriu que o texto especificasse que a nulidade não é abstrata, mas sim nos termos dos artigos 563 a 573 do Código de Processo Penal.
O ministro também sugeriu que no quarto item, que fala do dever do magistrado de atuar para impedir esse tipo de prática, fosse alterada a redação de “órgão julgador” para “julgador”, evitando a impessoalidade no texto.
Já o ministro Cristiano Zanin, também parabenizando e acompanhando o voto da ministra, sugeriu que o acórdão do STF fosse enviado para a presidência dos Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais após o julgamento. O objetivo é que as novas regras sejam implementadas quanto antes, o que talvez requeira uma eventual capacitação dos magistrados. Cármen Lúcia também adotou a sugestão.
Por fim, o ministro Roberto Barroso, presidente do STF, deu a sugestão de expandir o tema para todos os crimes de violência contra a mulher. Carmén Lúcia concordou e lembrou que em muitas audiências de casos de violência doméstica a mulher é questionada como se suas atitudes tivessem resultado na agressão.
ADPF 1.107
Na petição, a PGR alega que o discurso de desqualificação da vítima, mediante a análise e a exposição de sua conduta e hábitos de vida, parte da “concepção odiosa” de que seria possível distinguir mulheres que merecem ou não a proteção penal pela violência sofrida.
“Em ambiente que haveria de ser de acolhimento, a mulher vítima de violência passa a ser, ela própria, julgada em sua moral e seu modo de vida, na tentativa da defesa de justificar a conduta do agressor, e sem a reprimenda proporcional pelo Estado”, diz um trecho da ação.
Outro argumento levantado pela PGR é o de que, na investigação de crimes relacionados à violência sexual contra a mulher, o consentimento da vítima é o único elemento a ser apreciado. Considerações sobre seu comportamento partem de conduta enviesada e discriminatória e devem ser prontamente contidas e repreendidas.