Desde a redemocratização do Brasil, consolidada com a Constituição de 1988, abundam os exemplos de casos que colocam frente a frente os interesses de proteção da saúde pública e os limites da liberdade individual. Apenas para refrescar a memória, cito aqui alguns dos casos recentes mais rumorosos: Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 10/2022, que permite a venda de plasma, recentemente aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal; Projeto de Lei (PL) 5008/2023, que tramita no Congresso Nacional para permitir o comércio e consumo de cigarros eletrônicos; Lei da Fosfoetanolamina (13.269/2016); ação no STF que analisa a constitucionalidade da criminalização do aborto (ADPF 442); ação no STF que analisa a constitucionalidade de criminalização do consumo de maconha (repercussão Geral, Tema 506) e ação no STF sobre vacinação obrigatória (ADI 6586 e 6587), etc.
Com notícias direto da ANVISA e da ANS, o JOTA PRO Saúde entrega previsibilidade e transparência para grandes empresas do setor. Conheça!
Entre os direitos de personalidade do indivíduo encontra-se o direito à liberdade. Entretanto, esse direito é limitado pelo princípio de proteção à dignidade da pessoa humana e, consequentemente, da proteção da vida, e da saúde individual e coletiva. É com base nessa premissa, por exemplo, que o artigo 13, caput, do Código Civil, prevê que, salvo por exigência médica, é proibido o ato de disposição do próprio corpo quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes.
Em síntese, em sociedades democráticas, a pessoa humana não pode fazer pleno uso de seu próprio corpo. Esse uso é limitado objetivamente: o ser humano não pode fazer uso de seu corpo de forma a produzir em si mesmo uma redução permanente de sua integridade física (venda de órgãos e uso de drogas consideradas “pesadas”, por exemplo) ou ainda um atentado aos bons costumes (automutilação e uso de drogas consideradas “leves’, por exemplo). Algumas exceções são admitidas, tais como no caso de transplantes de órgãos, regulados de forma bastante detalhada pela Lei 9.434/97.
A decisão estatal, seja ela legislativa, executiva ou judicial, sobre os limites do avanço do interesse público sobre as liberdades individuais é uma das questões mais delicadas nas sociedades democráticas modernas. Foucault foi a fundo nesse debate trazendo à luz importantes reflexões sobre o exercício do poder sobre o corpo humano como uma estratégia de dominação e controle social. Mais modernamente, a questão central a ser compreendida é de que forma o Estado pode tomar decisões que limitem as liberdades individuais sem que isso represente apenas dominação e controle, mas para que tais decisões sejam de fato decisões em benefício do interesse público e coletivo, de interesse de toda a sociedade.
Esse dilema é tratado em seus aspectos mais sensíveis pelo Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, de 1966, ratificado pelo Brasil e incorporado ao ordenamento jurídico nacional. Inicialmente, o Pacto reconhece e assegura a todos os seres humanos, sem exceção, o direito à vida, dispondo que “ninguém será arbitrariamente privado de sua vida”. Nesse sentido, o Pacto fixa regras universais de respeito aos direitos individuais, voltadas tanto aos Estados quanto aos cidadãos que habitam estes Estados. O Pacto limita a aplicação da pena de morte; proíbe a escravidão, a tortura e os tratamentos cruéis e degradantes; proíbe pesquisas médicas e científicas sem livre consentimento do participante; proíbe o trabalho forçado; proíbe prisões arbitrárias; proíbe a prisão por dívidas contratuais e estabelece que ninguém poderá ser objeto de ingerências arbitrárias ou ilegais em sua vida privada, em sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra e reputação.
Em seguida, o Pacto protege os indivíduos resgatando um princípio básico a ser respeitado pelas sociedades modernas e democráticas, o princípio da liberdade. Esse princípio aparece claramente, pela primeira vez, na Declaração dos Direitos dos Homens e dos Cidadãos francesa, de 1789, nos seguintes termos: “A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que não prejudique outrem: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão os que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites apenas podem ser determinados pela Lei”.
A proteção da liberdade se dá, portanto, por meio do respeito ao princípio da legalidade. Nos Estados modernos, a legalidade deve ser entendida em seu sentido amplo, abarcando não só as leis aprovadas pelo Parlamento (Poder Legislativo), mas também as normas infralegais e as decisões judiciais que dão concretude às leis. Dessa forma, as decisões estatais, em qualquer esfera de poder, devem estar sujeitas ao escrutínio público, e os motivos e justificativas que embasam tais decisões devem ser racionais, lógicos e, tanto quanto possível, técnicos — respeito às evidências científicas e ao conhecimento técnico que existe sobre o assunto em decisão. Além de tudo isso, devem ser sempre decisões que visem o interesse público, esse delineado, originalmente, pelo texto constitucional.
O que vem ocorrendo com bastante frequência nesse balé da democracia é que os interesses públicos nem sempre são bem identificados pelos agentes do Estado que tomam as decisões. Estes agentes do Estado são naturalmente agentes políticos, já que ocupam uma função de Estado, qualquer que seja, é sempre uma ação política. Mas devem ser também agentes tecnicamente preparados, seja para legislar, seja para executar políticas públicas, seja para decidir juridicamente conflitos sociais. Nesse delicado equilíbrio, as decisões de interesse da saúde pública valsam entre o técnico e o político de forma aleatória, ora beneficiando o interesse público, ora beneficiando interesses privados, sejam eles econômicos, morais, religiosos ou simplesmente de dominação e controle.
De um lado, a pandemia nos mostrou o mal que podem causar as decisões no campo da saúde pública tomadas apenas sob o ponto de vista da política, em desconsideração à boa técnica e às evidências científicas. Os mais de 700 mil brasileiros mortos na pandemia não nos deixarão esquecer disso jamais. O mesmo se aplica às propostas legislativas, calcadas em lobbies e na política com “p” minúsculo, que visam permitir a venda de plasma, o cigarro eletrônico ou que obrigam o SUS a fornecer fosfoetanolamina. Esses são típicos casos em que a melhor decisão estatal para o interesse público será aquela tomada com base em sólidas evidências científicas que cotejam os riscos e os benefícios de tais opções normativas.
De outro lado, a técnica e a ciência nem sempre são suficientes para indicar de que lado está o “interesse público” e a melhor interpretação da Constituição. Não só porque as evidências ainda não são tão evidentes, com o perdão da redundância, mas principalmente porque os temas em debate suscitam argumentos, emoções e lógicas que transbordam da pura técnica. É o caso de temas como aborto, uso recreativo e medicinal de drogas hoje proibidas, eutanásia e questões ligadas à sexo e gênero.
A solução para sairmos dos impasses normativos que nos imobilizam para encontrarmos soluções humanas e protetoras dos direitos fundamentais em temas tão importantes para a saúde brasileira é a transparência no processo de tomada de decisões, a honestidade intelectual nos debates públicos e a consideração sincera e argumentada de todos os fundamentos trazidos ao fórum público de debates. Além disso, reequilibrar a paridade de forças no debate público também é fundamental, para que os lobbies dos grandes grupos econômicos, religiosos ou de interesses corporativos ou associativos não degenerem o debate para torná-lo, tão somente, um teatro voltado a “legitimar” decisões que, racional e constitucionalmente, seriam consideradas violações aos direitos fundamentais mais comezinhos.