Encaminhada a primeira questão relativa à regulação de plataformas digitais — a moderação de conteúdo e o ecossistema de desinformação — por meio dos debates em torno do PL 2630/2020 na Câmara dos Deputados, ainda há muita coisa a ser feita. Seja em qualquer um dos Três Poderes, passamos agora para um segundo momento, subindo de patamar. Com o avanço da tramitação do PL 2768/2022, torna-se prioritário colocar cores econômicas sobre a tela do debate, indo além do território do direito. Mais precisamente, cores relativas à regulação assimétrica ex-ante das grandes plataformas digitais que atuam no Brasil.
Na verdade, a economia, por meio do modelo de negócios das plataformas, sempre esteve na base de todas as externalidades negativas derivadas da moderação de conteúdo, ou falta de, o que foi crucial na preparação política que culminou nos ataques aos Três Poderes da República no dia 8 de janeiro passado.
Impulsionamento, recomendação, autopreferência, moderação e monetização de dados pessoais são palavras que ouvimos muito nos últimos meses, mas que não fazem sentido serem abordadas pelo legislador e o regulador sem se entender que as mesmas são o coração da atuação comercial e da criação de ecossistemas digitais mantidos, regulados e fiscalizados somente pelas empresas que os suportam.
São mercados digitais cativos, onde princípios como defesa do consumidor, promoção da concorrência e da inovação não são prioridade daqueles que fazem as próprias regras e as aplicam. E isso vai da relação com o usuário de rede social até o desenvolvedor de aplicativos, passando pelos governos.
Mas, afinal, por que é tão difícil que as empresas aceitem abrir suas caixas-pretas? O modelo de negócios já é conhecido. Essencialmente, elas vendem e compram publicidade, coletando e tratando dados — pessoais ou não — para segmentar e recomendar produtos e serviços, cobrando para promover (impulsionar) determinados conteúdos no lugar de outros. Todos nós, na pele de usuários finais e/ou comerciais, mantemos uma relação menos ou mais informada com estes modelos. Ou com o que achamos que conhecemos deles.
Por sinal, assimetria e abuso de poder de mercado são dois pontos chaves da regulação econômica destas plataformas. A maior parte das regulamentações ora em curso no mundo nasceu de casos judiciais ruidosos, em que a questão concorrencial estava no cerne dos processos. Um exemplo é o caso de litígios experimentados pelo Google e sua plataforma de pesquisa online. A empresa é acusada de promover seus próprios serviços e produtos nos resultados de pesquisa do Google Shopping, em detrimento dos concorrentes. Isso cria uma assimetria no mercado, pois os usuários são direcionados para os produtos do Google, enquanto outros concorrentes têm menor visibilidade. Essa prática tem sido alvo de investigações antitruste em diversos países.
A Amazon também tem enfrentado querelas semelhantes. No caso da gigante do comércio eletrônico, uma acusação de autopreferência para seus próprios produtos em suas plataformas de vendas, o que dificulta a visibilidade e competitividade de outros vendedores. Já a Meta, dona de Facebook, Instagram e WhatsApp, experimenta questionamentos judiciais relacionados à privacidade dos dados dos usuários e ao seu poder de influência na disseminação de informações, vide o caso Cambridge Analytica.
E o que falta para o Brasil entrar mais a fundo no processo de regulamentação das plataformas digitais? Harmonia e alinhamento. Por ignorar de um lado a economia e, de outro, os direitos sociais, ambos os projetos mais relevantes tramitando no Legislativo são necessários, porém insuficientes.
Necessários porque algo precisa ser feito para conter os abusos cometidos por diferentes agentes dentro destes ecossistemas, prevendo suas obrigações, direitos e eventuais sanções. Insuficientes porque ambos não dialogam e, pior que isso, muitas vezes não preenchem algumas lacunas quando analisados individualmente ou criam incongruências. Se ambos viessem a ser aprovados hoje como estão, seria difícil impedir uma enxurrada de contestações na Justiça por conta de suas discrepâncias mútuas. Partindo de modelos de negócio que são os mesmos, a falta de coerência e coordenação entre os projetos prejudicará sua eficácia na proteção dos direitos dos usuários e no combate às práticas anticompetitivas.
Não foi por acaso que a União Europeia resolveu encaminhar seu marco regulatório de forma paralela e dialógica. Digital Services Act (DSA) e Digital Markets Act (DMA) são dois lados da mesma moeda, gêmeos que se complementam construídos em processos semelhantes de escuta da sociedade e debate legislativo. Ambas as leis são uma resposta aos desafios trazidos pela economia digital e buscam estabelecer um ambiente mais equilibrado e justo para todos os atores envolvidos.
Enquanto o DSA propõe regras mais claras e transparentes para as plataformas online, garantindo a proteção dos direitos dos usuários, como a liberdade de expressão, privacidade e segurança, o DMA busca evitar o domínio excessivo das grandes empresas de tecnologia, que muitas vezes utilizam seu poder de mercado em prol de seus próprios negócios como já foi exemplificado.
Isto posto, para onde podemos ir? Uma alternativa que ganhou força com a tramitação do PL 2768 é a de regulação assimétrica ex-ante. Essa abordagem busca nivelar o campo de jogo entre as grandes empresas de tecnologia e os demais players do mercado por meio de regras claras e transparentes que promovam a concorrência saudável. Dessa forma, pretende-se evitar a concentração de poder nas mãos de poucas empresas e fomentar a inovação e a diversidade no setor. A regulação assimétrica ex-ante permite antecipar possíveis abusos de mercado e evitar que as empresas dominantes prejudiquem a concorrência antes mesmo que isso aconteça.
A regulação assimétrica ex-ante é um tipo de regulação que é aplicada antes que um problema ocorra. Ela é baseada na ideia de que a assimetria de informações entre o regulador e o regulado pode levar a comportamentos oportunistas, como seleção adversa e o moral hazard.
A seleção adversa acontece quando o regulado tem mais informações sobre suas próprias condições do que o regulador. O moral hazard ocorre quando o regulado tem incentivos para tomar riscos que não levariam em consideração se tivesse que arcar com as consequências. Isso pode acontecer quando o regulado é protegido pelo regulador de sofrer as consequências de seus atos. Essas regras e condições devem ser projetadas para garantir que o regulado aja de forma eficiente e a bem do interesse público.
Outra iniciativa importante para o órgão regulador é estabelecer diferentes regras e exigências para empresas ou participantes no mercado com base em suas características específicas, como tamanho, poder de mercado, capacidade financeira, entre outros. Essa abordagem é frequentemente usada para corrigir desequilíbrios percebidos na concorrência e promover a eficiência e a equidade no setor regulado.
Por exemplo, em telecomunicações, uma empresa dominante pode ser sujeita a regras mais estritas do que concorrentes menores para evitar práticas anticompetitivas. Ela é usada para prevenir ações desleais e garantir a contestabilidade em mercados onde existem barreiras estruturais à entrada elevadas e não transitórias. Onde uma dessas coisas não for possível, aplica-se a legislação antitruste de forma ex-post.
Começando do princípio, é necessário conceituar quem são os gatekeepers, o que é utilização adequada de dados, interoperabilidade, contestabilidade e equilíbrio da concorrência (fairness), entre outros termos cruciais para o bom exercício da regulação. Outro ponto relevante é o da simetria da regulação, a fim de não se ferir o necessário desenvolvimento tecnológico e a inovação das e nas plataformas. O que se deve mirar é justamente o contrário. Ter regras claras e transparentes para que, diferente do que ocorre hoje, os gatekeepers não possam impedir que mais agentes tenham acesso aos ecossistemas em condições isonômicas e com barreiras de entrada transponíveis.
Atualmente, as big techs definem o que entra e o que sai de seus próprios mercados, deixando desenvolvedores de software e outros fornecedores sem condições de justa negociação. Por fim, é preciso também que nos debrucemos sobre o presente olhando para o futuro. O marco legal deve ter flexibilidade suficiente a fim de abarcar os problemas atuais com flexibilidade para abordar o que virá pela frente.
Tirar do papel arcabouço legal tão complexo é uma tarefa hercúlea e intrincada. As leis, ou a lei, precisam prever mecanismos de governança, coordenação e controle bem alinhados para executar a tarefa. Uma primeira missão é definir o que se quer como regulação ex-ante. Como a legislação econômica, fundamentalmente calcada em regulação de preços, lidará com serviços formalmente gratuitos? Como atos de concentração em empresas de tecnologia serão avaliados? Como garantir que a inovação e o desenvolvimento tecnológico não sejam prejudicados com fusões e aquisições quase diárias que ocorrem nestes ecossistemas cativos?
Perguntas de difícil resposta, uma vez que as plataformas digitais também apresentam outras características únicas que podem desafiar as políticas tradicionais de defesa da concorrência, como os efeitos de rede, os mercados de dois ou múltiplos lados, a coleta e uso de dados e a inovação. Esses fatores podem exigir uma constante reflexão e revisão da teoria clássica do direito antitruste e de seus marcos regulatórios.
Uma segunda discussão que precisa ser feita é sobre o melhor locus para cuidar do tema. Se aprovado, o PL 2630 trará consigo a figura de uma autoridade exclusiva para tratar da fiscalização das obrigações e aplicação de eventuais sanções às plataformas. Como a proposição não se debruça sobre questões econômicas, presume-se que isto não será objeto de atuação da futura agência. Por sua vez, o PL 2768 remete estas responsabilidades para a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), mas não inclui as obrigações sobre moderação de conteúdo porque este não é o alvo do projeto.
Restam ainda entes como Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) do Ministério da Justiça e Segurança Pública com estrutura e competências para fazê-lo. Com uma curta menção no PL 2768 ao Cade, no que diz respeito a atos de concentração, os textos não dialogam com estes órgãos.
Diante deste cenário, impõe-se discutir uma autoridade nacional que trate de ambos os temas e ainda se debruce sobre inteligência artificial — outra seara que tangencia este debate e para a qual uma autoridade nacional também foi proposta no PL 2338/2023. Um órgão enxuto, com corpo técnico multidisciplinar, capaz de abordar a economia, o direito, a ciência de dados e a engenharia de software e telecomunicações. Uma expertise que pode até existir, mas encontra-se dispersa por vários órgãos.
Como organizar esta colcha de retalhos regulatória é a questão de US$ 8 trilhões — aproximadamente o valor atual de mercado das cinco maiores plataformas. E a pergunta não é mais como chegamos a esta encruzilhada, mas como adentraremos o labirinto.