Reforma tributária e confiança

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Em qualquer manifestação humana, o consenso é algo bastante raro. As pessoas possuem experiências, pontos de vista e objetivos distintos, o que torna o alinhamento em torno de uma decisão uma tarefa difícil e valorosa, especialmente em uma democracia representativa como a nossa.

Em assuntos complexos, técnicos e que alteram interesses de parcelas distintas da população, formar uma maioria é ainda mais difícil. Há uma clara tendência de manutenção do regime existente, frequentemente beneficiado pelo poder da inércia.

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Nesse contexto, a histórica reforma tributária sobre a tributação do consumo, formalizada pela promulgação da Emenda Constitucional 132/23, só foi possível em vista de incessantes negociações políticas, com efeitos para toda a sociedade civil. 

De um lado, interesses arrecadatórios da União, dos estados e dos municípios; do outro, os contribuintes, tensionando por uma justa repartição de encargos. Esse longo e difícil processo foi marcado por concessões mútuas e fundadas na crença de que os acordos, especialmente quando formalizados em alterações constitucionais, serão cumpridos.

Agora, com a chamada regulamentação da reforma tributária, via edição da lei complementar que operacionaliza concretamente os ditames mais gerais estabelecidos na Constituição, essa crença parece estar sendo colocada em risco. Nada que foge muito, é verdade, ao histórico de desconfiança mútua que marca a relação entre fisco e contribuintes no Brasil. Apesar de esperado, esse cenário não pode deixar de ser criticado e lamentado.

A reforma tributária, com todos os seus defeitos, pode se tornar (só o tempo dirá) um marco positivo na mudança do sistema tributário brasileiro e, por isso, não pode no seu nascedouro se atrelar a uma prática antiga e perniciosa de regulamentações que extrapolam o texto constitucional e descumprem acordos firmados, gerando espaço fértil para o estabelecimento de infindáveis litígios.

É exatamente isso o que aconteceu com a regulamentação, pela Lei Complementar 214/25, do Fundo de Compensação de Benefícios Fiscais (FCBF). 

Este fundo foi previsto pela emenda constitucional para compensar os contribuintes detentores de benefícios fiscais em razão da extinção paulatina do ICMS. A explicação é simples: a substituição do ICMS pelo IBS gera impactos relevantes aos contribuintes detentores de benefícios fiscais no âmbito do ICMS que, em vista dessa substituição, se vêm obstados de usufruir dos benefícios que lhe haviam sido concedidos.

Esse último ponto, aliás, de caracterização de quais benefícios poderiam ou não ser enquadrados para fins de compensação, foi expressamente tratado pela emenda constitucional, pelo que todos os benefícios de ICMS concedidos por prazo certo e sob condição onerosa pelos estados deveriam ser entendidos como hábeis a gerar o direito à compensação do fundo.

Aqui, a emenda constitucional claramente se afastou de uma longa e interminável discussão acerca da caracterização desses benefícios fiscais como subvenções para custeio ou como subvenções para investimento, travada há décadas pela Receita Federal contra os contribuintes, com toda sorte de argumentos, e que foi recentemente objeto de alteração legislativa em reação ao entendimento que havia sido pacificado anteriormente pelo Superior Tribunal de Justiça

A Receita Federal tem um entendimento bastante estreito acerca de quais benefícios deveriam ser tratados como subvenções para investimento e que, por isso, não deveriam ser tributados, ainda que esse entendimento esteja, muitas vezes, desassociado dos requisitos previstos em lei.

Essa discussão, ainda que de modo sutil, parece ter sido revisitada pela Lei Complementar 214/25, mas agora no âmbito do enquadramento dos benefícios que poderão ou não gerar as compensações pelo fundo.

Os contribuintes detentores de benefícios fiscais não possuem, hoje, segurança de que serão efetivamente compensados, sendo necessário o cumprimento de uma série de requisitos prescritos pela lei complementar, conforme interpretação que será realizada de modo centralizado pela Receita Federal e que sequer será objeto de revisão pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), mas apenas por instâncias burocráticas no âmbito da própria Receita Federal. 

Neste ponto, a nova lei exige a presença de ato concessivo para o enquadramento do benefício e estabelece uma lista meramente exemplificativa do que se pode entender por condição onerosa, o que pode inadvertidamente ser interpretado como uma delegação para que a Receita Federal tenha ampla competência decisória em todos os demais casos. A previsão de existência de grupos de trabalho para a identificação dos tipos de benefícios que podem ser classificados como enquadráveis parece confirmar essa ideia. 

Diante disso, o fundo será acessado pelos contribuintes detentores de benefícios fiscais que a Receita Federal entenda como enquadráveis, sem que os estados, que foram os entes concedentes destes, tenham qualquer participação relevante. 

Há, por isso, um risco relevante de restrição ao uso do fundo, com potencial para a geração de um grande contencioso tributário. Se a política é a arte do possível, como definiu Bismarck, é fundamental que as decisões legislativas tomadas sejam respeitadas, inclusive por aqueles que delas discordam.