Já em 2023, o Pix tornou-se, do ponto de vista quantitativo, o principal meio de pagamento no Brasil. Mas se por um lado a sua conveniência e eficiência transformaram o comportamento dos consumidores, o seu trade-off tem sido pouco debatido. Tendo em vista as possíveis consequências das decisões regulatórias, torna-se relevante realizar uma avaliação sob o prisma consequencialista e pragmático da Análise Econômica do Direito (AED).
Nessa esteira, existem desafios a serem enfrentados pelo Banco Central no sentido de aperfeiçoar e gerar mais confiança no arranjo. Deixando de lado a problemática constitucional de o BC ter se lançado ao mercado, quando, pelo art. 173 da Constituição Federal, a atuação do Estado na economia deveria ser residual, muitas de nossas preocupações poderiam ter sido avaliadas em uma prévia análise de impacto regulatório (AIR) adequada, contudo ainda é tempo de uma rigorosa Análise de Resultado Regulatório (ARR), com foco em pelo menos quatro grandes desafios:
A facilitação de fraudes e extorsões mediante sequestro;
O vazamento de dados das chave Pix, especialmente de idosos;
A responsabilidade civil da cadeia de fornecimento do serviço;
Estímulos à concorrência e inovação: os problemas de governança quando instituidor e regulador do arranjo são a mesma pessoa
A ascensão do Pix e o aumento de fraudes e extorsões
Como mencionado, na metade de 2023, o Pix já era o principal meio de pagamento no Brasil, superando cartões de crédito, débito e boletos bancários em volume de transações. Somado às medidas sanitárias durante a pandemia, a conveniência e eficiência do Pix transformaram o comportamento dos consumidores, mas também trouxeram desafios significativos, especialmente em relação à segurança das transações financeiras.
O início da utilização do Pix coincide com um crescimento preocupante nas tentativas de fraude, especialmente na cidade de São Paulo. De acordo com relatório da TransUnion, o Brasil foi o segundo país com o maior aumento nas tentativas de fraude nos primeiros quatro meses de 2021.
A facilidade e rapidez proporcionadas pelo Pix têm sido exploradas por criminosos, tornando-se um método de extorsão cada vez mais comum.
De um ponto de vista da economia do crime, a introdução de maior facilidade e agilidade nas transações reduz os custos da atividade criminosa, que passa a ser realizada de home office, e eleva os custos de monitoramento e enforcement, exigindo investimentos significativos em infraestrutura de segurança, tecnologias de detecção e prevenção e capacitação contínua de profissionais de segurança da informação. Isso atrai crime organizado que, ao invés de roubar um banco ou carro-forte vazios, prefere atuar no mundo virtual.
Se bandeiras como Visa, Mastercard ou Elo resolvem incorporar uma nova tecnologia de pagamento em seus arranjos, os consumidores podem responder a aumentos de insegurança migrando para uma bandeira concorrente. O mesmo pode ser dito para os bancos emissores de cartões e as credenciadoras de lojistas.
Até o presente momento, contudo, não há a possibilidade de opt-out do arranjo Pix pelo monopólio criado para si pelo Banco Central, como se verá mais adiante.
Vazamento de dados de idosos e a necessidade de RIPD
Incidentes de vazamento de dados envolvendo o Pix têm sido frequentes. Recentemente, cerca de 20 mil chaves de usuários do Pix, clientes da Iugu (Pagcerto), tiveram seus dados expostos, incluindo informações cadastrais como CPF e número de conta. Este foi o quinto incidente reportado pelo Banco Central em 2023, afetando aproximadamente 130 mil chaves em um universo de 149,1 milhões de pessoas físicas e 14,2 milhões de empresas cadastradas no sistema.
Nesses casos, é rotineiro o BC destacar que informações de chave Pix não se tratam de dados sensíveis. Essa ponderação precisa ser revista. De acordo com a LGPD e a Resolução CD/ANPD 2 de 2022, o tratamento de dados pessoais de idosos em larga escala é considerado de alto risco e exige um Relatório de Impacto à Proteção de Dados Pessoais (RIPD). Há motivos para essa preocupação especialmente no segmento financeiro.
Um estudo da Fundação Getulio Vargas (FGV) demonstra que, de modo geral, o poder aquisitivo de pessoas com mais de 65 anos é maior. Eles correspondem a 17% da fatia dos 5% mais ricos, enquanto representam 4% da grande fatia de 40% mais pobres. Ao mesmo tempo, declínio cognitivo para decisões financeiras torna essa população ainda mais vulnerável.
Sumit Agarwal e colegas do Banco Central do Canadá mostraram, em um estudo de 2009, que os erros financeiros seguem um padrão em forma de U, com a performance minimizadora de custos ocorrendo por volta dos 53 anos. Quem tinha 53 anos em 2004, hoje tem 73. A tecnologia aumentou, a capacidade de se atualizar diminuiu. Não por acaso, são alvos preferidos dos fraudadores.
Apesar dos dados das chave Pix (nome, celular, CPF ou email) não serem sensíveis, o seu tratamento inadequado pode levar a consequências graves. Criminosos podem facilmente utilizar desses dados para realizar golpes por engenharia social.
Em um golpe comum, o criminoso liga para o idoso e se apresenta como um agente do banco. Com as informações vazadas, ele pode ganhar a confiança da vítima, confirmando detalhes pessoais e bancários. Em seguida, convence o idoso a fornecer dados adicionais ou realizar transferências financeiras, resultando em perdas significativas.
Responsabilidade pelo Pix
Enquanto em transações com cartões de crédito e débito, por exemplo, é possível discutir a responsabilidade das bandeiras – instituidoras do arranjo de pagamento – a indenizar as vítimas de fraude quando haja falha na tecnologia disponibilizada no mercado, ainda é incerta em que medida seria possível obter a responsabilização do Banco Central, instituidor do arranjo Pix.
Fato é que essa responsabilização não tem sido feita. Ao invés, o ônus tem recaído integralmente nas instituições privadas, que respondem conforme a teoria do risco empresarial (art. 14 do CDC com Súmula 479 do STJ). Todavia, não foram os bancos que instituíram o Pix e que criaram o risco; ao contrário, são forçados a aderir ao arranjo.
A consequência econômica desse estado de coisas é que os custos associados ao risco gerado pelo Pix não são internalizados pela autarquia. Especialmente quando se coloca em curso uma agenda de inovações (BC+), é necessário clareza sobre quem se responsabilizará pelas próximas tecnologias. Mais do que isso, pode-se não estar dimensionando a exposição para administração pública de um risco criado no mercado.
Desafios na governança
Até 2013, a ausência de regulação do Banco Central do Brasil sobre bandeiras e credenciadoras era um problema regulatório significativo. Foi nesse contexto que a Lei dos Meios de Pagamentos e a Resolução CMN 4.282/13 vieram agregar ao BC a competência de adotar medidas para promover competição e inclusão financeira, especialmente quanto aos arranjos e instituições de pagamentos.
O Banco Central foi lançado à posição de agente catalisador de inovações, podendo usar diversos mecanismos para cumprir esse desiderato. Discutível, no entanto, se poderia ingressar no mercado e instituir forçadamente um arranjo de pagamentos, como foi o caso do Pix.
Vale dizer, o inovador que entrou no mercado é, ele mesmo, a sua autoridade regulatória. Isso faz com que haja diversas assimetrias caso o setor privado deseje lançar produtos ou serviços concorrentes, afinal, o BC tem acesso a muitas informações obtidas em razão de seu papel regulador. Esse “nó” de governança cria o risco de o Banco Central ser menos rigoroso com suas próprias necessidades de conformidade, além de que pode se valer de informações confidenciais para concorrer no mercado. Por isso, há que se falar da necessidade de separação de papéis entre inovação e regulação no Pix.
A importância da ARR
Portanto, diante dos desafios e riscos associados ao Pix, é imperativo que o Banco Central realize uma Análise de Resultado Regulatório (ARR) para adereçar esses desafios.
A adoção de medidas regulatórias baseadas em evidências, considerando as consequências pragmáticas das políticas implementadas, é essencial para assegurar confiança dos consumidores e das instituições privadas de pagamento não apenas no Pix, como também no Banco Central e seu papel institucional como supervisor do mercado de meios de pagamentos.