O momento hoje vivenciado na realidade tributária é de profunda transformação e, sem corrermos o risco de nos colocar em um “lugar comum”, experimentamos uma quebra de paradigma em relação ao sistema tributário nacional vigente desde a Constituição Federal de 1988.
Via de regra, os saltos paradigmáticos no âmbito do Direito decorrem de sintomas observados na realidade, isto é, quando esta sofreu mutação tal, que não resta alternativa para o Direito que não a acompanhar.
Em relação ao direito material tributário, especialmente quanto aos tributos incidentes sobre o consumo, há muito tem sido denunciada a sua inoperabilidade, seja em razão da guerra fiscal entre os estados no que concerne ao ICMS, enfraquecendo a federação, seja na quantidade de atos normativos editados pelos entes políticos (para nos atermos ao ICMS, ISS e IPI), ou nos infindáveis conflitos entre os fiscos (por exemplo, qual ente é competente para tributar determinada operação) e entre estes e os contribuintes quanto à interpretação da legislação.
Aliás, muitos dos litígios tributários têm se arrastado por anos até que o Supremo Tribunal Federal (STF) venha a proferir a última decisão, no mais das vezes inconsistente, ensejando a multiplicação de “teses filhote”, em um movimento circular que se retroalimenta, levando ao esgotamento desse modelo.
Os excessos – de legislação, de interpretação, de conflitos e de soluções inconsistentes – reclamavam comportamentos inteiramente novos entre os fiscos e os contribuintes, tanto de direito como de fato.
O primeiro movimento percebido com mais clareza em direção à redução das complexidades tributárias ocorreu quando, após 53 anos da edição do Código Tributário Nacional (1966), foi publicada a MP 899/2019, instituindo a transação tributária (federal), deixando para os anais da história o dogma da indisponibilidade do bem público.
Mas tal reação se deu como contraface à excessiva litigiosidade, ou seja, após a instauração do conflito e não para impedir a formação do estado de beligerância tão desgastado entre fiscos e contribuintes.
Nessa medida, e com objetivo de avançar na redução das complexidades antes da formação do litígio, foi editada a Emenda Constitucional 132/2023, em que migramos das competências constitucionais exclusivas dos entes políticos para criar impostos, fórmula existente desde a Constituição Federal de 1891[1] e assim mantida no sistema tributário nacional inserido na Constituição Federal de 1946[2], para um modelo compartilhado entre estados, Distrito Federal e municípios na criação do IBS (reservando-se à União a competência da CBS).
A mencionada EC 132/2023 promoveu ruptura (parcial) do sistema tributário nacional substituindo o ICMS, o ISS, a contribuição ao PIS e a Cofins para o IBS e a CBS, além de instituir o Comitê Gestor do IBS (CG-IBS), órgão em que se concentrarão os pagamentos e as compensações (e/ou restituições) de tal tributo, apoiado em um aguardado sistema de tecnologia capaz de processar uma multiplicidade inimaginável de operações.
Aliás, arriscamos afirmar que o uso do aparato tecnológico é a “marca” da reforma tributária sobre o consumo, o que se confirma pela análise do PLP 68/2024, apresentado pelo Poder Executivo Federal, instituidor do IBS e da CBS.
Basta ver que o coração da reforma projetada é o sistema de recolhimento e compensação (e/ou restituição) do IBS e da CBS, qual seja, o split payment (artigo 50 do PLP), pensado para reduzir a sonegação e garantir a automação das operações (realizadas em tempo real), com objetivo de concretizar a neutralidade constitucional (artigo 156-A, § 1º c/c artigo 195, § 16, da CF).
Aliás, estima-se que em razão do split payment o hiato de conformidade (assim entendido como o montante que deveria ser pago pelo contribuinte versus o que este deixou de recolher) deverá ser reduzido de 23% (atual) para 15% a 13%.
Além da relevância dos efeitos prático-financeiros, tal regra passa a integrar o que se denomina de “devido processo tecnológico”, como leciona Silvia Piva em artigo intitulado “Split payment e a reforma da arrecadação tributária na era digital” [3], e promete realizar os princípios da simplicidade e da transparência.
No entanto, a tecnologia não se encontra apenas na operacionalização do split payment, pois toca transversal e integralmente o novo modelo de tributação sobre o consumo.
Basta percorrer o texto do PLP 68/2024 para confirmação desse fato: a administração do IBS e da CBS poderá ser dar por meio de plataforma única (artigo 41, § 1º); haverá obrigação das pessoas físicas e jurídicas ao registro em cadastro com identificação única, em que as informações cadastrais terão “integração, sincronização, cooperação e compartilhamento em ambiente nacional de dados” (artigo 42, § 2º); o contribuinte poderá informar os dados relativos ao IBS e à CBS mediante apresentação de declaração pré-preenchida por ele ajustável (artigo 47), entre outros direitos e obrigações, harmonizados com o princípio da simplicidade.
Compreendemos, portanto, que ao lado do devido processo tecnológico ingressamos de vez na era da plataformização jurídico-tributária que, sob o ponto de vista holístico, está em linha com uma sociedade contemporânea cada vez mais complexa, em que a inteligência artificial generativa vem tomando espaço crescente, alterando a forma do homem interagir em todos os aspectos das relações sociais.
Linguagem tecnológica, desde que dotada de transparência, possibilita controle mais acurado das operações e, portanto, mais segurança jurídica.
Outro fato revelador do salto de paradigma que atravessamos, se tomarmos em consideração o sistema tributário nacional então vigente, é a instituição, pela EC 132/2023, do federalismo cooperativo traduzível (mas não só) na competência compartilhada de cada um dos estados, Distrito Federal e municípios para tributar as operações (inclusive importação) com bens materiais ou imateriais, inclusive direitos, ou com serviços (artigo 156-A, § 1º, I e II da CF).
Se raciocinarmos em termos das estruturas lógico-normativas, poderíamos admitir que haverá tantas regras-matrizes de incidência tributária do IBS quantas forem as alíquotas fixadas por cada um dos entes por meio de lei, o que significa que o referido compartilhamento de competência residiria menos na sua formulação jurídico-normativa – já que os entes criarão cada qual o seu IBS – e mais no aspecto econômico-financeiro, ou seja, na divisão do produto arrecadado via CG-IBS[4]. Trata-se de alteração considerável em termos de atribuição competencial tributária pela Constituição.
Isto é, a investigação do conteúdo semântico do termo compartilhamento de competência é voltada para a análise de como as receitas tributárias arrecadadas serão segregadas entre os entes, o que lhes garantirá a efetiva autonomia.
Retomando o antes mencionado artigo 156-A, § 1º, I e II da CF, o legislador constituinte concedeu aos estados, Distrito Federal e municípios competência compartilhada para tributar, pelo IBS, a classe das operações com bens materiais ou imateriais, inclusive direitos, ou com serviços, não trazendo a determinação de que deste conjunto sejam subtraídas as operações tributáveis em razão do exercício das competências exclusivas dos entes políticos (previstas em outros dispositivos existentes antes da promulgação da EC 132/2023).
E, como não há, por determinação constitucional, subconjunto que possa ser retirado daquele conjunto universal que contém a classe de todas as operações estipuladas no dispositivo, nos parece que não haveria inconstitucionalidade a macular a coexistência da tributação sobre determinada operação, ora pelo IBS, ora por outro imposto criado pelo ente federativo a quem a Constituição outorgou competência exclusiva.
Esse ponto decorre da formulação inteiramente diversa daquela até então conhecida, em que o legislador constituinte delimitava a competência tributária para instituição de impostos pela União, estados, Distrito Federal e municípios, mediante a definição de um verbo acrescido de seu complemento. Como exemplo, cite-se: circular (verbo) + mercadoria (complemento), tributável pelo ICMS; prestar (verbo) + serviço (complemento), tributável pelo ISS.
Como o IBS e a CBS serão devidos sobre operações com quaisquer bens, inclusive com serviços, a base de incidência é ampla (todas as operações) e, em contrapartida, ao se garantir o efetivo creditamento, o ônus econômico recairá sobre o consumidor final, configurando a efetiva tributação sobre o consumo.
Por fim, a força centrípeta atrativa das inovações referidas é o princípio da neutralidade. Enquanto valor, direciona a produção de todos os preceitos instituidores do IBS e da CBS, ou seja, o legislador complementar deverá prescrever que a tributação sobre o consumo seja neutra, onerando apenas o último elo da cadeia.
O modo de fazê-lo é assegurar, pela regra da não cumulatividade, mecanismos de pagamento dos tributos e abatimento dos créditos de maneira segura, transparente, simples e eficaz, como promete ser o split payment.
Mais do que um valor ou do que uma regra, quando se combinam, o princípio da neutralidade e a regra (técnica) da não cumulatividade, nos moldes como desenhados, traduzem nova lógica tributária sobre o consumo, aferível a partir da totalidade da Constituição e do PLP 68/2024, não se podendo interpretá-los em “tiras”, como adverte Eros Grau[5].
Daí porque o presente artigo objetiva provocar reflexão sobre como o intérprete compreenderá a nova tributação sobre o consumo.
Ao nos apropriar, como intérpretes, das diversas alterações implementadas pela EC 132/2023 e pelo PLP 68/2024 – como o essencial papel da tecnologia e das plataformas integrativas; do federalismo cooperativo; da partilha do produto arrecadado em termos de definição de competência – que, somadas, descortinam um verdadeiro salto paradigmático tributário, fazendo delas o guia para a interpretação da reforma sobre o consumo, atuaremos, em verdade, (mesmo que não nos apercebamos) de acordo com o zeitgeist[6].
[1] Dispunha a Constituição Federal de 1891: “Art 7º – É da competência exclusiva da União decretar: 1º) impostos sobre a importação de procedência estrangeira; (…). Art 9º – É da competência exclusiva dos Estados decretar impostos: (…); 4º) sobre indústrias e profissões.”
[2] Por meio da EC 18/1965.
[3] https://www.conjur.com.br/2024-jun-01/split-payment-e-a-reforma-da-arrecadacao-tributaria-na-era-digital/
[4] Sobre esse ponto, cite-se o artigo https://www.conjur.com.br/2023-dez-24/ibs-calculo-de-relacoes-e-desdobramentos-processuais/, de Paulo Cesar Conrado.
[5] Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 127. Ver também voto na ADI 3.685.
[6] O termo significa espírito de uma época e tem sido utilizado para demarcar a era da revolução tecnológica que estamos assistindo.