Os quatro primeiros artigos desta série foram voltados à modalidade do imposto seletivo que temos chamado de clássica (IS-clássico), delineada no art. 153, VIII e §6º, I a V, da Constituição Federal. Poderá ser cobrado pela União (i) visando à redução do consumo de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, (ii) em caráter extrafiscal e, portanto, observando as boas práticas de governança aplicáveis às políticas públicas, (iii) com alíquotas ad valorem ou ad rem, e (iv) de forma monofásica.
Não tínhamos discorrido, portanto, sobre o IS-extração, objeto do art. 153, VIII e §6º, VI, da Constituição Federal. É ele o tema deste último artigo.
Comecemos do básico: dispõe o art. 114 do CTN que a obrigação tributária principal nasce com a ocorrência do fato gerador, entendido como “a situação definida em lei como necessária e suficiente à sua ocorrência”. O fato gerador tem como núcleo (ou materialidade) algum evento descrito pelo legislador. A partir da materialidade, são desenhados os “aspectos que dão plenitude ao fato gerador como acontecimento presente no mundo” (Luciano Amaro, Direito Tributário Brasileiro, 2023, ebook, p. 114).
São os aspectos (i) subjetivo (sujeitos ativo e passivo do tributo), (ii) quantitativo (apuração do quantum devido, conforme sistemática ad valorem, em que um percentual é aplicado sobre uma base de cálculo, ou específica, ad rem), (iii) espacial, correspondente à definição do local em que se considera ocorrido o fato gerador, e (iv) temporal (momento da ocorrência do fato gerador).
Apliquemos agora o básico à nossa investigação: nos termos do art. 153, VIII, da Constituição Federal, compete à União instituir impostos sobre “produção, extração, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, nos termos de lei complementar”.
Vale lembrar, como registrado nos primeiros artigos desta série, que, embora o texto constitucional vincule o fato gerador do IS à produção, extração, comercialização ou importação, não significa que a materialidade do imposto envolva os prejuízos à saúde ou ao meio ambiente porventura decorrentes dos atos de produzir, extrair, comercializar ou importar determinados bens ou serviços.
Isso porque o IS é um imposto sobre o consumo, com finalidade extrafiscal, para induzir comportamentos. Assim, sua materialidade é o consumo de bens e serviços nocivos à saúde ou ao meio ambiente, o que se busca regular por meio da tributação. Vale dizer, o que se busca desestimular é o consumo de um determinado bem ou serviço, e não os processos de produção, extração, comercialização e importação.
É essa materialidade constitucionalmente prevista que deverá balizar a instituição do IS por meio de lei complementar, bem como o desenho de seus aspectos subjetivo, quantitativo, espacial e temporal.
O desenho deverá ainda observar o §6º do art. 153, que elenca algumas características do IS:
Não incidirá sobre exportações, nem sobre operações com energia elétrica e telecomunicações;
Incidirá uma única vez sobre o bem ou serviço (tema de nosso quarto artigo);
Não integrará sua própria base de cálculo, mas integrará as bases do ICMS, do ISS, do IBS e da CBS;
Poderá ter o mesmo fato gerador e base de cálculo de outros tributos; (v) terá suas alíquotas fixadas em lei ordinária, podendo ser específicas, por unidade de medida adotada, ou ad valorem (tema do terceiro artigo desta série); e, finalmente;
Nas extrações, será cobrado independentemente da destinação, com alíquota máxima de 1% sobre o valor de mercado do produto.
Para a melhor interpretação do §6º do art. 153 é necessário fazermos uma breve digressão para resgatar um conceito de técnica legislativa (lato sensu). A Constituição Federal, no artigo 59, parágrafo único, determinou que “lei complementar disporá sobre a elaboração, redação, alteração e consolidação das leis”. Em 1998, foi editada a Lei Complementar nº 95, que, em seu art. 11, III, “c”, dispôs que os parágrafos expressam “aspectos complementares à norma enunciada no caput do artigo e as exceções à regra por este estabelecida”.
Dessa forma, no desenho da hipótese de incidência tributária, a exceção porventura contida em parágrafo de artigo que fixa a materialidade do fato gerador de um tributo poderá apenas excluir determinadas situações do seu âmbito de incidência, mas jamais incluir circunstâncias incompatíveis com o núcleo da hipótese de incidência. Em outras palavras, o parágrafo pode conter exceção que restrinja a incidência do tributo, mas não que a amplie.
Um bom exemplo de exceção, compatível com a materialidade do imposto, consta do inciso I do §6º do art. 153, que impede a incidência do IS-clássico sobre “as operações com energia elétrica e com telecomunicações”. Ainda que excepcionando a regra do caput, o referido inciso apenas limita a incidência do imposto nessas situações, sem ampliá-la.
A nosso ver, o mesmo racional é aplicável ao inciso VII do referido parágrafo, segundo o qual, “na extração, o imposto será cobrado independentemente da destinação, caso em que a alíquota máxima corresponderá a 1% (um por cento) do valor de mercado do produto”.
Esse inciso não pode ser interpretado de modo a ampliar a hipótese de incidência do imposto para abranger quaisquer extrações, desvinculando-a da finalidade constitucional de desincentivar o consumo de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, tampouco permite a interpretação de que, nesses casos, a cobrança do IS seria justificável pelos prejuízos à saúde ou ao meio ambiente decorrentes da extração em si.
Pelo contrário, deve ser interpretado como restrição à cobrança do IS-extração, limitada quantitativamente a 1% do valor de mercado do produto. Restringe também o inciso I do §6º do art. 153, pois, conforme as emendas 292 e 497 à PEC 45/2019, que foram acatadas pelo senador Eduardo Braga (MDB-AM) para inserir o IS-extração no texto, a expressão “independentemente da destinação” foi utilizada no inciso VII para permitir que, no caso das extrações, o IS seja cobrado nas exportações, com a finalidade de conferir fundamento constitucional à futura cobrança de um carbon tax no Brasil (cobrado por outros países sobre bens e serviços considerados altos emissores de carbono, como uma forma de proteger o meio ambiente, e usualmente calculado com base na quantidade de CO2 emitida).
Ressalvadas as duas particularidades apontadas acima, a eventual instituição do IS-extração por meio de lei complementar estará sujeita aos seguintes parâmetros:
Somente poderão ser tributados por ele os produtos cujo consumo (e não o processo de extração do qual se originam) seja comprovadamente prejudicial à saúde ou ao meio ambiente; e
Como a extrafiscalidade não foi excepcionada no inciso VII (e nem poderia, sob pena de desvirtuar a premissa do imposto de induzir comportamentos), a cobrança do IS-extração demandará observância às boas práticas de governança aplicáveis às políticas públicas, que incluem avaliação ex ante e ex post, inclusive para a definição do seu aspecto quantitativo, conforme o segundo e o terceiro artigos desta série; e
Como não foi excepcionada a previsão de que o imposto “incidirá uma única vez sobre o bem ou o serviço” (inciso II do mesmo parágrafo), o IS-extração fica sujeito à sistemática monofásica do seletivo.
Assim, o momento da sua cobrança deverá ser modulado adequadamente para evitar duplas onerações de uma mesma cadeia, bem como para impedir que sejam onerados bens e serviços que promovem a saúde e o meio ambiente. Seguindo o racional do quarto artigo desta série, essa modulação pode ser feita por meio de arranjos de suspensão, com a cobrança do imposto somente quando da liberação do bem para consumo, consoante a experiência internacional.
Tal desarranjo aconteceria, por exemplo, se instituída a cobrança do imposto sobre as extrações de ferro ou petróleo. O ferro compõe mais de 98% do aço, material fundamental em equipamentos médicos, e o petróleo é insumo do politetrafluoretileno, utilizado na produção de cateteres hospitalares, e do polipropileno, utilizado na fabricação de seringas. São exemplos em que a cobrança do IS-extração iria na contramão da finalidade de proteger a saúde e o meio ambiente.
Em conclusão, a cobrança do IS-extração, se ocorrer, deve ser compatibilizada com a materialidade constitucionalmente prevista para o imposto seletivo no art. 153, VIII, e às boas práticas de governança voltadas às políticas públicas, das quais esse tributo é uma entre as possíveis ferramentas. Deve-se ter em conta que a materialidade do IS recai sobre o consumo de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, não sobre os processos de produção, extração, comercialização ou importação em si. Portanto, caso o IS-extração venha a ser instituído, é imprescindível que sua cobrança não onere produtos que contribuem para a promoção da saúde e do meio ambiente, desvirtuando o objetivo constitucional desse imposto.
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Com nossos agradecimentos à Maria Raphaela Matthiesen, que tanto contribuiu nos debates envolvendo a peculiar cobrança do imposto seletivo na extração. Agradecemos também à Letícia Sugahara, que tem enfrentado conosco os desafios do novo imposto seletivo e cujas contribuições permitiram o sucesso desta série.