O decréscimo dos standards probatórios para a cassação por fraude à cota de gênero

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Desde a implementação da cota de gênero de candidaturas femininas inseridas no § 3º do art. 10 da Lei 9.504/97 (Lei 12.034/09), os partidos políticos passaram a ter que lançar, no mínimo, 30% de candidaturas femininas nas eleições para os cargos proporcionais. Apesar desta norma apresentar-se como de observância compulsória, reforçando o compromisso de enfrentamento da subrepresentatividade feminina na política, ela não contou com adequados mecanismos de enforcement, quer seja através da instituição de estímulos positivos, quer seja através de instituição de sanções decorrentes de sua implementação.

Fundadas na ideia de que o processo de registro das candidaturas apresentado pelo partido/coligação enseja a prolação de uma decisão definitiva (sobre a legitimidade dos atos partidários de escolha das candidaturas a serem inscritas no pleito), muitas agremiações começaram a inscrever candidaturas femininas tão-somente para permitir que mais candidaturas masculinas fossem lançadas. Os mais diferentes expedientes foram utilizados para arregimentar candidaturas que eram uma não-candidatura, quais sejam: a indicação de esposas/mães/filhas de candidatos, o registro de funcionárias dos diretórios, a contratação de mulheres-candidatas (mediante recompensa em dinheiro) e, inclusive, a inscrição de mulheres que sequer sabiam estarem candidatas.

E, neste ínterim, o Parlamento permanecia em silêncio eloquente. Ante esse estado de coisas, a Justiça Eleitoral supriu esta lacuna, mediante a reinterpretação do conceito de fraude (a construção da chamada fraude à cota de gênero). O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) passou a admitir primeiro o processamento de Ação de Impugnação de Mandato Eletivo e, depois, da própria Ação de Investigação Judicial Eleitoral  para apurar tais condutas em flagrante descompasso com o propósito da lei.

A política judicial fixada, em que pese afigurar-se legítima (sob o ponto de vista da busca pela concretização da política afirmativa) acarretou uma série de problemas e perplexidades, especialmente, no tocante aos parâmetros a serem adotados pela autoridade judicial na configuração do ilícito e definição do alcance da sanção imputada à agremiação partidária (e, por conseguinte, dos candidatos por ele registrados, na condição de beneficiários da fraude).

A delimitação do alcance da sanção aplicada foi firmada no paradigmático precedente de Valença do Piauí (REspE 193-92, julgado em 17/09/19) e recentemente confirmada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em decisão de caráter vinculante (ADI 6338/DF, relatora-ministra Rosa Weber, p. em 7 de junho de 2023). A partir de então, tem-se por definitivo o entendimento fixado de que todos os candidatos (inclusive candidatas mulheres beneficiárias da política afirmativa), mesmo que não haja qualquer indício sobre sua participação direta ou anuência com a fraude reconhecida, devem sofrer as consequências sancionadoras. Com isso, estabeleceu-se uma fórmula de responsabilização objetiva de todos (e todas!) candidatos inscritos pela agremiação partidária, dispensando-se quaisquer análises sobre o elemento subjetivo daqueles que sofrem as consequências da imposição da sanção (decorrente da anulação do DRAP).

Diante de tal cenário, não é por demasiado reafirmar a premissa já adotada em outros estudos acerca do tema[1] de que a apuração às fraudes à cota de gênero é manifestação do jus puniendi estatal, qualificado como direito eleitoral sancionador, tendo em vista os objetivos perquiridos com a imposição da restrição à elegibilidade. A demonstração de que se busca, com a imposição das sanções pela fraude à cota de gênero, fins retributivos ou punitivos agora pode ser verificado para além das premissas implícitas do TSE sobre os casos, mas explicitamente pelo STF na ADI 6.338[2].

Partindo-se desse pressuposto, decisões como essa, que acabam por afetar direitos políticos fundamentais e a própria soberania popular, deveriam contar com uma intransigente observância às regras do devido processo legal e convencional para sua aplicação. Todavia, além da fórmula de responsabilização objetiva que se instaurou, chama-se atenção para um decréscimo no nível de standard de prova exigido para imposição da cassação desde o Caso de Valença do Piauí/PI (REspE 193-92), utilizando como irrefutável exemplo a cassação dos candidatos eleitos para a Câmara Municipal de Itaiçaba/CE (REspE 0600392-82, julgado em 27/04/23).

No precedente inaugural os elementos fixados seriam indicativos de fraude, cabendo à autoridade judicial a análise das circunstâncias do caso concreto para a imposição da sanção de desconstituição do registro da chapa inscrita nas eleições proporcionais. Para chegar a conclusão acerca da fraude da agremiação deveriam ser aferidas situações como “a ausência ou votação diminuta, a ausência de campanha nas redes sociais, despesas eleitorais reduzidas e inexistência de propaganda impressa”, circunstâncias estas que deveriam ser sopesadas em seu contexto de aplicação.

No entanto, a Corte Superior empreendeu uma significativa mudança sobre o standard de prova a ser exigido para a configuração da fraude. Aqueles fatores que, antes eram considerados indicativos da fraude, passam a ser adotados como presunção jure et de jure da ocorrência de fraude, sendo guindados à condição de que sempre[3] demonstram a ocorrência do ilícito. Esta força probante persiste ainda que, na mesma circunscrição eleitoral, encontremos outros candidatos (do gênero masculino) com votação similar inexistente (ou inexpressiva), e que tenham abandonado suas candidaturas (sem evidências de atuação nas redes sociais).

Neste breve ensaio, reafirmamos o que já foi dito em outras oportunidades de que a existência de tais elementos não pode levar à conclusão inequívoca de que restou configurada a fraude à cota de gênero. Esta afirmação conclusiva se assenta a partir da (re) afirmação de duas premissas centrais a serem observadas no âmbito da jurisdição eleitoral.

Uma primeira, decorrente da imprescindibilidade que sejam observados os princípios constitucionais e convencionais do direito sancionador, que não se coaduna com a tarifação probatória por meio da qual a presença dos inícios gera a “presunção de fraude”, elementos considerados suficientes para a configuração do ilícito eleitoral. Aceitar essa conclusão importa em substancial malversação das regras do devido processo legal. Com um agravante, decisões como estas legitimam uma atuação expansiva da jurisdição eleitoral assentada em flagrante e ininterrupto decréscimo significativo no nível de robustez de prova exigido para imposição das gravosas sanções.

A segunda, relativa às consequências desestabilizadoras para a democracia e para a própria política afirmativa a superveniência de decisões judiciais que cassam candidatas eleitas por ofensa à cota de gênero, o que está a exigir uma reflexão crítica sobre as premissas teóricas (e suas consequências) que remontam aos emblemáticos casos de José de Freitas, também do Piauí (REspE 1-49 e 24342, julgados em 04/08/15 e 16/08/16 respectivamente).

Uma fórmula que acarreta, inevitavelmente, na cassação de mulheres pela cota de gênero na política. Mulheres estas eleitas, muitas vezes, sem qualquer apoio partidário e depois acabam sendo penalizadas pelas atitudes ou, ao menos, negligência das agremiações[4]. Ou seja, um absoluto contrassenso, uma autofagia da ação afirmativa e um desincentivo à participação das mulheres[5].

Não se está a negar, em hipótese alguma, a importância das políticas afirmativas e da preservação das conquistas até aqui obtidas, tampouco da necessidade de resistência frente aos ataques sistemáticos (e seus meios inventivos) empreendidos por partidos (fortemente masculinizados) que insistem em sonegar às mulheres que ocupem espaços de poder. Todavia, esse propósito legítimo não pode ser implemento à custa de uma diminuição progressiva de exigências probatórias suficientes para a imposição de sanções tão gravosas aos direitos políticos fundamentais, as quais, para além da dimensão subjetiva dos afetados, importam em distorção das escolhas empreendidas pelo sufrágio popular.

Além disso, e não à toa, medidas como essas tomadas de forma desproporcional e, não raras vezes, punindo mulheres legitimamente eleitas, provocam reações do Poder Legislativo que podem colocar em xeque as conquistas até aqui obtidas. É o que vimos com a tentativa de anistia às fraudes pelas cotas e a minirreforma eleitoral que se debateu e pretendeu reduzir de 30% para 15% a cota de candidaturas.

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[1] CUNHA, A. G. da; BASTOS JÚNIOR, L. M. P. Fraudes à Cota de Gênero na Perspectiva do Direito Eleitoral Sancionador. Resenha Eleitoral, Florianopolis, SC, v. 24, n. 1, p. 57–84, 2020. Disponível em: https://revistaresenha.emnuvens.com.br/revista/article/view/5  Acesso em: 30 ago. 2023.

[2] […] 4. A transposição das disposições constitucionais e legais para o mundo factual não prescinde, na atual conjuntura social, de um arcabouço sancionatório adequado e eficiente que possibilite, ainda que por meio da coerção estatal, a transformação de condutas, em ordem a proporcionar no domínio fenomenológico a igualdade entre homens e mulheres […]

[3] […] 6. A partir do leading case do caso de Jacobina/BA (AgR–AREspE 0600651–94, red. para o acórdão ministro Alexandre de Moraes, DJE de 30.6.2022), a jurisprudência deste Tribunal tem reiteradamente assentado que “a obtenção de votação zerada ou pífia das candidatas, a prestação de contas com idêntica movimentação financeira e a ausência de atos efetivos de campanha são suficientes para evidenciar o propósito de burlar o cumprimento da norma que estabelece a cota de gênero, quando ausentes elementos que indiquem se tratar de desistência tácita da competição” (REspEl 0600001–24, rel. Min. Carlos Horbach, julgado em 18.8.2022). […] (RECURSO ESPECIAL ELEITORAL nº 060039282, Acórdão, Relator(a) Min. Sergio Silveira Banhos, Publicação:  DJE – Diário de Justiça Eletrônico, Tomo 96, Data 18/05/2023)

[4] SANTANO, Ana Cláudia. Crônicas de uma mulher cassada pela cota de gênero da política: uma proposta de reflexão que não se embasa no direito, mas nas vivências das mulheres na política no interior do Brasil real. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/elas-no-jota/cronicas-de-uma-mulher-cassada-pela-cota-de-genero-da-politica-03042023

[5] SILVEIRA, Marilda de Paula. As candidatas eleitas, apesar das candidaturas fictícias, também devem ser cassadas? Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/as-candidatas-eleitas-apesar-das-candidaturas-ficticias-tambem-devem-ser-cassadas-03092019