O PL 1904/2024 praticamente equipara a homicídio doloso o aborto legal realizado após a 22ª semana da gestação. Muitos setores da sociedade e da política expressaram sua indignação perante a tentativa de tornar as mulheres brasileiras reféns de uma briga política e de estratégias de promoção de pautas religiosas. O problema é que a indignação é um mau conselheiro. Nesse inflamado debate, ambas as partes parecem (querer?) ignorar os dados jurídicos sobre o aborto no direito brasileiro.
Primeiro dado jurídico: o aborto constitui hoje no Brasil um direito das mulheres constitucionalmente protegido. É o que decidiu o Supremo em 2016. No habeas corpus 124.306, a 1ª Turma examinou pedido de soltura de médicos denunciados por crime de aborto. Com relatoria do ministro Luís Roberto Barroso, o tribunal ordenou a soltura porque considerou inconstitucionais as normas do Código Penal que criminalizam o aborto voluntário no primeiro trimestre da gravidez.
A decisão invocou, para tanto, os direitos da mulher à liberdade, à integridade física e psíquica, assim como o direito à igualdade, já que homens não engravidam, não suportando o ônus da gestação, devendo ser protegido o poder de escolha das mulheres. O Supremo considerou também que a penalização é ineficaz e desnecessária, porque causa sofrimento e riscos de saúde e não impede os abortos ilegais.
Essa é a mais recente decisão definitiva do tribunal sobre o tema. Ora, se o aborto é um direito da mulher no primeiro trimestre da gravidez, sem que ela seja obrigada a justificar sua decisão, o que dizer da punição do aborto de mulheres que sofreram estupro? O que a Câmara dos Deputados deseja legislar agrava a inconstitucionalidade do Código Penal conforme a jurisprudência do Supremo.
Segundo dado jurídico: restrições impostas ao aborto legal são inconstitucionais. A ADPF 1.141 de 2024 questionou resolução do Conselho Federal de Medicina que praticamente impossibilita o aborto legal após a 22ª semana da gestação e também ameaça com sanções medicas e médicos que o praticam. A resolução foi suspensa por cautelar do ministro Alexandre de Moraes em 17/5/2024, declarando a inconstitucionalidade da resolução. Para o ministro, o Conselho Federal de Medicina abusou de seu poder ao proibir a realização de abortos que o legislador federal considera legais sem estabelecer restrições temporais.
Em interessante obiter dictum dessa cautelar, o ministro disse que a restrição contraria também as recomendações da OMS: “Ao limitar a realização de procedimento médico reconhecido e recomendado pela Organização Mundial de Saúde, inclusive para interrupções de gestações ocorridas após as primeiras 20 semanas (…), o Conselho Federal de Medicina aparentemente se distancia de standards científicos compartilhados pela comunidade internacional”.
No mesmo dia da publicação da cautelar, foi protocolado o PL 1904 por deputadas e deputados da direita pró-armas e antiaborto. É uma clara tentativa de legislative backlash, havendo emprego de meios legislativos para reverter uma decisão da corte constitucional.
Já no Supremo, o ministro Alexandre de Moraes submeteu a cautelar a referendo do plenário virtual. Após voto do ministro André Mendonça que indeferia a cautelar, o ministro Nunes Marques pediu “destaque”, algo que impede o julgamento virtual. A decisão colegiada deverá ocorrer em momento incerto pelo plenário físico. Mas apesar das tensões internas no STF sobre a denominada “pauta de costumes”, é fato que até o presente momento o Supremo decidiu de maneira clara a favor dos direitos das mulheres em questões reprodutivas.
A cautelar baseou-se no argumento da hierarquia das fontes do direito e não entrou no mérito das condições de interrupção da gravidez após a 22ª semana. Se o legislador permite o aborto em certa situação, um órgão corporativo não pode invalidar a norma legal. Ora, se o legislador penal proibir o aborto nesse caso, o cenário normativo muda. O Supremo deverá se posicionar novamente. Mas temos o obiter dictum da decisão cautelar: para a comunidade internacional, representada pela OMS, o aborto após a 22ª semana é considerado medicalmente recomendado.
De sua parte, o Congresso mantém a criminalização do aborto voluntário, algo que o Supremo considerou limitação inconstitucional dos direitos da gestante no primeiro trimestre. E agora deseja ampliar a criminalização, gerando uma segunda vitimização das mulheres que sofreram violência sexual.
É de notar que o PL 1904 tramita no regime de urgência. Diz o art. 155 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados que pode ser submetido a votação imediata, suspendendo-se cautelas procedimentais e etapas de tramitação, uma “proposição que verse sobre matéria de relevante e inadiável interesse nacional”. Ou seja, a maioria absoluta de deputadas e deputados federais decidiu que é de “relevante e inadiável interesse nacional” punir vítimas de estupro.
Pesquisa que realizamos em dezenas de países sobre normas acerca do aborto[1] permitiu confirmar três hipóteses. Primeiro: as leis sobre o aborto são sempre submetidas ao juízo da corte constitucional. Segundo: as cortes não hesitam em contrariar a decisão do legislador, tanto nos casos em que ele descriminaliza o aborto (mais raro), como quando o criminaliza (mais comum). Terceiro: tentativas de backlash legislativo são submetidas ao crivo das cortes que acabam tendo a última palavra na questão do aborto.[2]
Se o PL 1904 for aprovado pelo Congresso, deve-se aguardar eventual veto do presidente da República e, a seguir, votação no Congresso que poderá derrubar o veto. Se essa lei for promulgada, a questão certamente chegará ao Supremo. Além dos argumentos de inconstitucionalidade material, o Supremo terá o argumento da inconstitucionalidade formal.
A norma penal que autoriza o aborto em caso de estupro vigora desde 1940. O que gerou esse repentino “inadiável interesse nacional” 84 anos depois? O que fez imprimir a denominada urgência urgentíssima na tramitação parlamentar? O que poderá dizer o Congresso quando for instado pelo Supremo a oferecer informações sobre o processo legislativo? Confessará que não havia razão para tramitação excepcional? Ou dirá que o “inadiável interesse nacional” consistia única e exclusivamente no enfrentamento de uma decisão do próprio STF, já que o projeto de lei foi protocolado no dia em que o ministro Moraes derrubou a vedação do aborto tardio?
O futuro dos direitos reprodutivos das mulheres no Brasil não depende das iniciativas e decisões de parlamentares que querem constranger o governo e promover sua pauta religiosa. Depende de decisões do Supremo. Nesse campo, o Legislativo reage à jurisprudência do STF com apresentação e eventual promulgação de novas leis. Mas não tem como evitar que o Judiciário fiscalize e, eventualmente, anule as decisões legislativas.
Aqui surgem as perguntas. Quando o Supremo se pronunciar definitivamente sobre a ADPF 442, protocolada em 2017, dará efeito vinculante à legalização do aborto no primeiro trimestre, seguindo a mencionada tese da 1ª Turma? Por que o plenário silencia?
Estão também pendentes de julgamento a ADPF 989 (declaração de estado de coisas inconstitucional no sistema público de saúde que dificulta o acesso ao aborto legal), a ADIn 7.594 (inconstitucionalidade de lei estadual que obriga a gestante a ouvir os batimentos cardíacos do feto antes de aborto legal) e a já comentada ADPF 1.141. Será que o Supremo estabelecerá regras claras para que as vítimas de estupro possam abortar sem que sejam submetidas a chicanas e tratamentos degradantes por parte do poder público e da corporação médica?
Integrantes do Legislativo mostram o desprezo pela vida de mulheres e meninas vítimas de violência. O silêncio do Supremo poderá provocar a punição de vítimas inocentes.
[1] “Lessons and Contradictions. How Constitutional Courts rule on abortion worldwide” (2024), de próxima publicação.
[2] A constitucionalização do direito ao aborto na França em março de 2024 não objetivou apenas impedir limitações do aborto após eventual vitória eleitoral da extrema Direita. Objetivou também impedir que o Conselho constitucional tivesse a última palavra sobre a questão, já que na França as emendas constitucionais não são objeto de controle de constitucionalidade (Decisão 92-313 de 23-9-1992).