Ao assumir a presidência mensal do Conselho de Segurança, onde o país tem um assento rotativo até o final do ano, o Brasil não imaginava o esforço diplomático que estava por vir. Sua intenção não era abordar temas que pudessem gerar indisposições com EUA, China e Rússia. Todavia, o início de mais um conflito no Oriente Médio no dia 7 de outubro gerou um novo cenário, o qual o país não tinha como se afastar, especialmente pelo cargo agora ocupado.
Já foram quatro Resoluções vetadas no âmbito do Conselho de Segurança das Nações Unidas que tinham como objeto o conflito entre Israel e Hamas.
A primeira proposta foi introduzida pela Rússia ainda no dia 16 de outubro e tinha como escopo um cessar-fogo na região, sem, porém, condenar as ações do Hamas. Por isso, recebeu apenas cinco votos favoráveis (China, Gabão, Moçambique, Rússia e Emirados Árabes Unidos). Foram quatro votos contra (França, Japão, Reino Unido e EUA) e seis abstenções (Albânia, Brasil, Equador, Gana, Malta e Suíça).
Vale lembrar que de acordo com o artigo 27(2) da Carta da ONU, para uma medida ser aprovada no âmbito do Conselho de Segurança sobre questões de paz e segurança mundial, deve-se obter ao menos 9 votos de 15, sem votos contrários de qualquer um dos países com assento permanente no referido órgão (EUA, França, Reino Unido, Rússia e China). As abstenções, no caso, não equivalem a veto, muito embora sejam importantes para fins de atingir-se os nove votos mínimos favoráveis a uma resolução para fins de aprovação.
Já a segunda Resolução, rascunhada pelo Brasil, foi vetada pelos Estados Unidos no dia 18 de outubro. Essa resolução, cujo objetivo central era a garantia de acesso de ajuda humanitária na Faixa de Gaza, teve apoio de 12 dos 15 países que compõem o citado órgão da ONU, apenas tendo a abstenção de Reino Unido e Rússia e o veto estadunidense. Vale pontuar que a abstenção russa adveio em razão de suas emendas voltadas à garantia de um cessar-fogo imediato, duradouro e total e ao fim dos ataques contra civis, não terem sido aprovadas. Já a abstenção dos britânicos estava alinhada ao posicionamento estadunidense de que seria necessário citar o direito de legítima defesa de Israel em se defender do Hamas, nos termos do art. 51 da Carta da ONU.
Sobre o tema, duas questões precisam ser pontuadas.
Primeiro, que de acordo com o Direito Internacional tradicional, para que a legítima defesa fosse permitida nesse caso tal como almejado por tais Estados para a aprovação da Resolução brasileira, seria necessário preencher os requisitos de ‘ataque armado’ estipulados na Resolução 3314/1974 da Assembleia Geral da ONU. Esta, ao seu turno, determina que um ataque ocorre quando um país comete um ato de agressão contra outro país – e o Hamas, no caso, não é um Estado, mas um ator não-estatal na medida em que é apontado enquanto um grupo terrorista. E, no caso, atores não-estatais, em Direito Internacional, são diferentes de sujeitos. Enquanto estes possuem direitos e deveres no plano externo, podendo ser responsabilizados por suas condutas, aqueles certamente influenciam o plano externo, mas não possuem direitos e deveres diretos. Um sujeito, mais especificamente, um Estado, precisa apresentar quatro elementos básicos: povo, território, governo e soberania. E, no caso, não se estaria falando do Hamas pontualmente, mas da Palestina como um todo. Apesar disso, o Hamas deveria não só ser reconhecido por Israel enquanto o governo de facto da Faixa de Gaza, como também ser considerado o representante legítimo da Palestina no plano internacional, que contempla as regiões de Gaza e Cisjordânia. Ocorre que essa é uma questão ainda mais complexa na medida em que a Autoridade Nacional da Palestina (ANP) é que representa legitimamente o povo palestino segundo o direito internacional, tendo, inclusive, selado um acordo em 2014 com o Hamas para assumir a administração de Gaza, em que pese essa “transferência” ainda não tenha sido efetivada. Ou seja, o argumento da legítima defesa israelense nos termos literais da ONU resta prejudicado.
Segundo, o uso da legítima defesa contra grupos terroristas somente ocorreu de maneira limitada até hoje. O exemplo aceito (para. 11 da opinião separada do Juíz Bruno Simma no caso Armed Activities on the Territory of the Congo, julgado em 2005) é a situação do 11 de setembro de 2001, quando os Estados Unidos utilizaram-se do argumento de legítima defesa para lançar a operação Enduring Freedom no dia 7 de outubro daquele mesmo ano contra a Al-Qaeda situada no Afeganistão. Ocorre que, naquele caso, haviam algumas particularidades que não estão presentes na atual situação, tais como a existência de um vínculo (p. 187) entre o governo de facto do Afeganistão (o Talibã) e a Al-Qaeda, vez que aquele oferecia safe heaven para os membros do citado grupo terrorista, fazendo com que as suas condutas pudessem ser indiretamente atribuídas ao Estado[1].
Ademais, impende recordar que a tentativa de Israel em utilizar-se da legítima defesa para realizar medidas contra grupos terroristas nos territórios palestinos não é recente. A própria Corte Internacional de Justiça já se manifestou sobre a impossibilidade de tal Estado em alegar o art. 51 no seu parecer consultivo de 2004 sobre a ilegalidade da construção de um muro nos territórios ocupados (para. 139), exatamente porque os ataques ensejadores da legítima defesa precisam ser cometidos por outro Estado, não podendo ser utilizado quando os ataques vêm “de dentro”. Logo, o argumento israelense não se mostra suficientemente respaldado pelo Direito Internacional.
Além disso, é importante ressaltar também que o veto estadunidense também apresenta um viés político. Guga Chacra, no programa Globonews em Pauta do dia 26 de outubro, afirmou que o Departamento de Estado, responsável pela política externa estadunidense, teria ficado satisfeito com a Resolução, mas que a ordem de veto teria sido dada pela Casa Branca, haja vista que Joe Biden estava à caminho de Israel e tinha a intenção de costurar, ele mesmo, a entrada de ajuda humanitária em Gaza, na tentativa de reafirmar a influência estadunidense na região, deixando, com isso, a ONU em segundo plano. Trata-se de uma medida compreensível desde o ponto de vista político, tendo em vista que as eleições presidenciais se aproximam e Biden aparece como pré-candidato. E se olharmos para o passado, o envolvimento dos EUA com conflitos e/ou questões internacionais de relevo para apoiadores fizeram com que seus políticos ganhassem apoio da população/congresso, a exemplo de George Bush (Guerra do Golfo), Bill Clinton (Acordos de Oslo), George W. Bush (Guerra ao Terror) e Barack Obama (busca por Bin Laden).
Já a terceira e quarta Resoluções foram colocadas em pauta no dia 25 de outubro. Apesar de ambas condenarem os ataques do Hamas do dia 7 de outubro – ponto este que havia ficado de fora nas duas primeiras tentativas de Resolução e que deu início a este novo capítulo de violência na região – uma proposta, capitaneada pelos Estados Unidos, utilizava o termo ‘pausa humanitária’ e trazia o direito de legítima defesa de Israel; já a outra, patrocinada pela Rússia, utilizava o termo ‘cessar-fogo humanitário’ para fins de envio sem limitações de ajuda à Gaza e pugnava pelo fim imediato da ordem de evacuação de civis para o sul da região pelas forças israelenses.
A primeira não agradou a China, a Rússia e os Emirados Árabes Unidos, os quais vetaram a medida, fazendo com que ela não fosse aprovada em virtude do rechaço dos dois primeiros, que são membros permanentes do órgão. Apesar disso, 10 países votaram a favor (Gabão, França, Japão, Reino Unido, EUA, Albânia, Equador, Gana, Malta e Suíça) e dois se abstiveram (Brasil e Moçambique).
Já a segunda obteve menos aceitação, não atingindo nem o mínimo de votos favoráveis necessários. Foram apenas quatro votos aprovando a medida (China, Gabão, Rússia e Emirados Árabes Unidos), dois contrários (Reino Unido e EUA – ambos membros permanentes) e nove abstenções (Albânia, Brasil, Equador, França, Gana, Japão, Malta, Moçambique e Suíça).
A presidência brasileira no Conselho, porém, cessa no final do mês de outubro. Em novembro a China assume a presidência, o que pode dificultar um pouco a negociação de outras resoluções considerando o seu histórico de apoio à Rússia. Em dezembro, quem assume é o Equador, muito embora acredite-se que esperar até o citado mês para alguma medida seja temerário em função dos elevados números de mortos e feridos, especialmente de civis, os quais deveriam ser alvos indisponíveis em ofensivas militares no contexto de um conflito armado haja vista o que dispõe o Direito Internacional Humanitário.
Impende lembrar, ainda, que se o Conselho de Segurança falha na ‘diplomacia da guerra’, a Assembleia Geral da ONU pode ser acionada para tentar chegar a uma solução. Trata-se do uso da Resolução 377(V) de 1950, mais conhecida como ‘Uniting for Peace’, quando a Assembleia Geral concedeu a si mesma o poder de debater temas sobre paz e segurança mundial quando o Conselho de Segurança mostrou-se incapaz de fazê-lo em virtude do uso do veto pela União Soviética – então detentora de um assento permanente, hoje, pertencente à Rússia – no contexto da Guerra da Coreia, como forma de protesto pela recusa da Organização em reconhecer a República Popular da China como representantes legítimos da China, em detrimento da República da China (Taiwan).
O uso dessa Resolução permite, portanto, que a Assembleia debata situações de paz e segurança quando um país permanente do Conselho de Segurança vete a medida, impedindo uma solução, tal como ocorreu, por exemplo, em março de 2022 em relação à Ucrânia, quando adotou-se a Resolução ES-11/1 por 141 votos a favor, 35 abstenções e 5 votos contrários, exigindo a saída russa do território ucraniano.
No caso do conflito em comento entre Israel e Hamas, em virtude das quatro tentativas frustradas de adoção de Resolução no Conselho, a Assembleia já se reuniu emergencialmente para fins de debater a situação e adotar um documento rascunhado pela Jordânia. Com 120 votos a favor (incluindo o voto brasileiro), 14 contrários (dentre os quais estão os votos de Estados Unidos e Israel) e 45 abstenções, foi aprovada uma Resolução que pugna por uma trégua humanitária imediata, a abertura de um corredor humanitário, a revogação da ordem israelense de evacuação de Gaza, a libertação dos civis sequestrados pelo Hamas e a condenação de atos terroristas (sem, contudo, citar nomes). Vale dizer que outra Resolução votada minutos antes que tinha este fim, proposta pelo Canadá, não obteve êxito por não alcançar os dois-terços dos Estados presentes e votantes necessários, como aponta o art. 18(2) da Carta da ONU. Note-se que eram necessários ao menos 119 votos a favor dos 179 presentes, e atingiu-se apenas 88 votos favoráveis ao documento (incluindo o voto brasileiro).
Apesar dessa medida ter sido adotada, salienta-se que as resoluções da Assembleia Geral, diferentemente daquelas adotadas no âmbito do Conselho de Segurança sobre paz e segurança mundial, não são vinculantes. Isto é, um resultado prático pode não ocorrer em virtude da natureza deste ato.
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[1] O uso da força indireto cometido por um Estado contra outro é sedimentado no Direito Internacional, remontando ao caso das atividades militares e paramilitares na e contra a Nicarágua, julgado pela Corte Internacional de Justiça em 1986, em que os Estados Unidos forma considerados culpados por utilizarem indiretamente da força contra a Nicarágua por meio do apoio que estes concediam aos Contras – grupo paramilitar que almejava realizar um golpe de Estado (para. 103-104).