Com a aprovação, pelo Legislativo, da MP 1185/2023, que trata da tributação das subvenções, o governo Lula deveria voltar o seu olhar ao Judiciário. As novas regras de tributação dos benefícios fiscais deverão ser questionadas por contribuintes na Justiça, e os tribunais superiores já deram, no passado, decisões que vão contra as diretrizes estabelecidas pela Medida Provisória.
Editada em 31 de agosto, a MP 1185 altera a sistemática de tratamento tributário dos incentivos de ICMS. Sai de cena o conceito de abatimento desses benefícios estaduais da base do IRPJ, CSLL, PIS e Cofins, para um modelo no qual o governo concede um crédito fiscal atrelado aos benefícios fiscais de ICMS, que o contribuinte poderá usar por meio de ressarcimento ou compensação. O benefício, entretanto, está restrito às subvenções para investimento, nas quais há uma contrapartida à concessão do incentivo.
As novas regras são criticadas primeiramente por aumentarem a complexidade do sistema atual. É criado um tipo novo de crédito, correspondente a apenas parte da tributação incidente sobre as subvenções para investimento. De acordo com o texto da MP, o crédito fiscal equivale a 25% do IRPJ incidente sobre as subvenções.
Vale lembrar que, antes da Lei Complementar 160/2017, que equiparou as subvenções para custeio às subvenções para investimento, a esfera administrativa gastava muito tempo analisando leis estaduais para decifrar a natureza do incentivo de ICMS concedido, o que influenciava na incidência de IRPJ e CSLL. Ou seja, nem sempre é evidente o que é uma subvenção para investimento — na qual há uma contrapartida para a fruição do incentivo — nem tampouco se o contribuinte cumpriu essa contrapartida.
A advogada Thais Veiga Shingai, sócia de Mannrich e Vasconcelos Advogados, destaca ainda que, com o texto da MP, as empresas acabam ficando “à mercê da Receita Federal”, já que pode haver demora na restituição dos créditos. A versão aprovada pela Câmara melhora esse cenário, à medida em que prevê um prazo de 30 dias para que a Receita se pronuncie sobre a habilitação para que a empresa seja beneficiária do crédito fiscal. Shingai destaca, porém, que ainda há a possibilidade de cancelamento dos créditos.
Guerra fiscal e LC 160
Já o advogado e titular de Direito Financeiro da Faculdade de Direito da USP Heleno Torres destaca que, caso sancionada, a MP pode ser judicializada, entre outros pontos, caso haja a tributação de benefícios que foram instituídos antes da edição da medida, ainda que a incidência do IRPJ, CSLL, PIS e Cofins ocorra a partir de 2024. Para Torres, além de ferir a confiança que os contribuintes depositaram na administração pública, a tributação “retroativa” iria contra o artigo 178 do Código Tributário Nacional (CTN), que prevê que a isenção pode ser revogada ou modificada por lei a qualquer tempo, “salvo se concedida por prazo certo e em função de determinadas condições”.
O tributarista lembra que a Lei Complementar 186/2021, alterou a LC 160 para prever a prorrogação de diversos benefícios fiscais até 2032. Ainda, de acordo com Torres, a LC 160 não é uma norma que trata de ICMS, mas sim da resolução de problemas federativos. Isso porque, ao equiparar subvenções de investimento às de custeio e chancelar benefícios dados à revelia do Conselho de Política Fazendária (Confaz), a LC 160 tinha por objetivo acabar com a guerra fiscal, tanto a horizontal (entre estados) quanto a vertical (entre estados e União).
STJ
Outro tema polêmico da MP 1185 é a possibilidade de tributação dos créditos presumidos de ICMS, com a possibilidade de creditamento caso a subvenção seja considerada como de investimento. Em relação ao ponto, que deve ser questionado judicialmente por contribuintes, há indicativos de posições do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF) que, se mantidas, podem ser desfavoráveis à Fazenda.
Em relação ao STJ, a 1ª Seção decidiu em 2018, por meio do EREsp 1517492, que a tributação dos créditos presumidos fere o pacto federativo. “A tributação pela União de valores correspondentes a incentivo fiscal estimula competição indireta com o Estado-membro, em desapreço à cooperação e à igualdade, pedras de toque da Federação”, consta no voto vencedor, redigido pela ministra Regina Helena Costa.
A decisão, tomada por um placar de 5 a 2, não consta em recurso repetitivo, ou seja, não vincula as demais instâncias do Judiciário ou o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). Porém, por ora, é a decisão mais forte da corte sobre o tema. Levando isso em consideração, é de se pensar que outros processos sobre o assunto possam ser julgados da mesma forma, já que o entendimento do STJ não está restrito a uma legislação específica, mas sim a um argumento mais amplo, relacionado ao pacto federativo.
O cenário, porém, pode ser alterado com o julgamento do tema por meio de recurso repetitivo. Três processos (REsps 2091200/SC, 2099847/SC e 2091206/PR) foram elencados para julgamento pela metodologia, porém não há data para análise pelo STJ.
Apesar da decisão tomada pelo STJ em 2018, a mudança de jurisprudência caso haja o julgamento dos repetitivos é vista como possível por advogados e mesmo por um ministro consultado pelo JOTA. Além da mudança de composição da 1ª Seção (apenas quatro ministros que votaram em 2018, todos favoráveis à tese dos contribuintes, permanecem na turma), o colegiado tem sido palco de alterações de entendimentos.
Exemplo foi o julgamento sobre a tributação de outros benefícios de ICMS que não sejam créditos presumidos, precedente diretamente relacionado à MP 1185. Por meio dos REsps 1945110 e 1987158, analisados como repetitivos, a 1ª Seção decidiu, por unanimidade, que incentivos como redução de alíquota e diferimento podem ser abatidos da base de cálculo do IRPJ e da CSLL, desde que cumpridas as regras constantes da LC 160 e da Lei 12.973/14.
STF
O Supremo também analisa a tributação dos créditos presumidos, porém sob o viés da incidência de PIS e Cofins. O processo sobre o caso (RE 835818) será reiniciado no plenário após pedido de destaque do ministro Gilmar Mendes em 2021. Antes do requerimento, entretanto, todos os ministros haviam votado, e o placar estava em 6 a 5 a favor dos contribuintes.
Até então saía vencedora a posição do ex-ministro Mauro Aurélio, que concluiu que os créditos presumidos não poderiam ser considerados como riqueza nova, não podendo ser tributados pelo PIS e pela Cofins. Com o pedido de destaque, o julgamento é retomado do zero, porém são mantidos os votos dos ministros aposentados. Isso significa que os posicionamentos dos ministros Marco Aurélio, Rosa Weber e Ricardo Lewandowski, contrários à tributação, permanecem, e os magistrados que os sucederam não se posicionam.
Outro caso que, segundo especialistas, pode dar dicas de como será o posicionamento do STF sobre tributação de benefícios fiscais é o recém-finalizado RE 593544, por meio do qual os ministros, por unanimidade, retiraram o crédito presumido de IPI da base de cálculo do PIS e da Cofins.
Para a advogada Glaucia Maria Lauletta, do escritório Mattos Filho, o resultado do julgamento, com a maioria dos ministros considerando que o benefício não caracteriza faturamento para as empresas, uma vez que não é receita oriunda da venda de bens ou da prestação de serviços, poderá ser utilizado como argumento para judicializar a MP 1185.
Para Lauletta, no caso do crédito presumido de ICMS, os contribuintes podem alegar justamente que não se trata de faturamento para as empresas, o que afastaria a tributação do benefício pelo PIS e pela Cofins. “É uma análise da questão em outra perspectiva. É observar o efeito que o crédito presumido de ICMS provoca para o contribuinte, que não é necessariamente de aquisição de disponibilidade econômica. Não há variação patrimonial que enseje receita e, portanto, justifique a tributação”, diz.
A própria MP 1185 foi questionada no STF pelo PL, por meio da ADI 7551, sob o argumento de quebra do pacto federativo, entre outros. Especialistas, porém, veem poucas chances de análise da liminar pedida pelo partido.