Liberdade para denunciar ameaças à liberdade: um direito fundamental em xeque

  • Categoria do post:JOTA

A liberdade de expressão é um dos direitos fundamentais mais significativos de uma sociedade democrática. Ela permite o debate aberto, a crítica, o exercício do controle social e a fiscalização, essenciais para o desenvolvimento e a manutenção de uma sociedade justa e equilibrada. No entanto, essa liberdade não é absoluta e, frequentemente, entra em choque com outros direitos fundamentais, como a honra e a imagem.

No Supremo Tribunal Federal (STF), o Tema 837, de relatoria do ministro Luís Roberto Barroso, que possui como leading case o RExt 662.055, ilustra bem esse embate. O recurso foi interposto pelo Projeto Esperança Animal (PEA) contra uma decisão do TJSP que confirmou a condenação do PEA em desfavor da Festa do Peão de Barretos, organizada pela associação Os Independentes. 

No caso, o PEA havia lançado campanha e informes destinados aos patrocinadores do evento afirmando que a Festa do Peão de Barretos provocava maus-tratos aos animais. Alegando que tais acusações eram falsas e prejudiciais aos seus patrocínios, a associação buscou reparação por danos morais e a proibição da divulgação das informações, obtendo sucesso no juízo de primeiro grau, bem como na 4ª Câmara de Direito Privado do TJSP. Ambas as decisões se fundamentaram no suposto abuso do direito à liberdade de expressão cometido pelo PEA.

O caso coloca em evidência uma questão importante: até que ponto a liberdade de expressão pode ser limitada quando em colisão com outros direitos fundamentais? A resposta a essa pergunta tem implicações profundas para a democracia, especialmente no contexto digital, onde as informações se disseminam rapidamente e têm o potencial de influenciar a opinião pública em larga escala.

A liberdade de expressão, especialmente em uma era digital, é um direito que deve ser protegido com rigor. Isso inclui a liberdade de denunciar práticas que se julgam contrárias ao bem-estar público, como os maus-tratos a animais. Impedir que organizações como o PEA expressem suas opiniões e denúncias pode ser interpretado como uma forma de censura, minando a transparência e a accountability, que são fundamentais em uma sociedade democrática. 

O contexto internacional oferece algumas diretrizes sobre como abordar esse equilíbrio. O Pacto Global da ONU, por exemplo, enfatiza a responsabilidade das empresas de respeitar os direitos humanos e promover práticas empresariais responsáveis. Ao mesmo tempo, nos comentários ao Princípio de nº 1, reconhece o papel crucial da sociedade civil em monitorar e denunciar práticas que violam esses princípios. Isso inclui a liberdade de organizar boicotes e campanhas de conscientização, desde que baseadas em fatos verídicos.

Um exemplo histórico que ilustra tal complexidade é o caso Lüth, decidido pelo Tribunal Constitucional Federal Alemão em 1958. Neste caso, Erich Lüth, um cidadão alemão, convocou um boicote contra um filme do cineasta Veit Harlan, que havia colaborado com o regime nazista. Lüth foi processado por Harlan, que alegou danos morais e materiais. O Tribunal de Hamburgo inicialmente condenou Lüth, mas a decisão foi revertida pelo Tribunal Constitucional, que reconheceu a legitimidade do boicote como uma manifestação de liberdade de expressão, especialmente por estar fundamentada em motivos coletivos e não em interesses pessoais. 

Este caso estabeleceu um importante precedente no constitucionalismo alemão ao afirmar que a liberdade de expressão pode incluir ações como o boicote, desde que direcionadas a fins públicos e coletivos, servindo como um baluarte para a proteção desse direito fundamental mesmo quando confrontado com interesses econômicos ou reputacionais de terceiros.

No Brasil, a legislação de defesa do consumidor também apoia essa visão, permitindo que os consumidores sejam informados e tomem decisões baseadas em informações completas e precisas. O direito ao boicote é, portanto, uma extensão natural da liberdade de escolha e de expressão, servindo como um mecanismo de controle social sobre práticas empresariais.

A decisão do STF neste caso terá repercussões significativas. Se a liberdade de expressão for severamente limitada em nome da proteção de outros direitos, corremos o risco de criar um precedente perigoso que pode ser usado para silenciar críticas legítimas e necessárias, incluindo a própria liberdade de imprensa. 

Organizações ambientalistas ou de enfrentamento ao trabalho análogo à escravidão, por exemplo, poderiam ter sua capacidade de denunciar comportamentos empresariais irresponsáveis substancialmente diminuída.

O mesmo aconteceria com organizações dedicadas ao enfrentamento à desinformação e ao financiamento do extremismo antidemocrático, como é o caso do Sleeping Giants Brasil.

A liberdade para denunciar ameaças à liberdade é um direito que deve ser cuidadosamente protegido e balanceado com responsabilidade. A sociedade deve ter a capacidade de criticar e fiscalizar, mas essa capacidade deve ser exercida com base na verdade e na responsabilidade.