Irregularidades no mercado de capitais e evolução inefetiva de normas de governança

  • Categoria do post:JOTA

No início da década de 2020 o órgão regulador do mercado de capitais no Brasil empreendeu esforços para atualizar e aprimorar as normas de governança corporativa, visando impor, aos participantes, a adoção das melhores práticas de transparência e justiça no universo corporativo. A preocupação em zelar pela integridade, eficiência e desenvolvimento do mercado de capitais fez com que fossem publicadas diversas Resoluções Normativas que atualizavam regras antiquadas.

Em 2021, dentre diversas importantes inovações, houve a publicação da Resolução 44, que dispõe sobre, dentre outras matérias, práticas de Insider Trading e Insider Information. Especificamente sobre esta Resolução, destaca-se a inclusão da norma de presunção de que os acionistas controladores, diretos ou indiretos, diretores, membros do conselho de administração e do conselho fiscal, e a própria companhia têm acesso a toda informação relevante ainda não divulgada. Não obstante, a norma também presume que a pessoa que negociou valores mobiliários durante o período anterior à divulgação o fez com base na informação privilegiada.

Este é apenas um exemplo das diversas normas publicadas com o intuito de modernizar o mercado e aumentar a proteção dos investidores. Apesar de tudo isso, o ano de 2023 foi palco de diversos escândalos envolvendo grandes corporações brasileiras. Com efeito, em 11 de janeiro a Americanas S.A. divulgou Fato Relevante acerca de supostas fraudes contábeis. Não bastasse o suposto rombo de R$ 20 bilhões, os ex-diretores, acusados como responsáveis pelos ilícitos, venderam a monta de R$ 244 milhões em ações de sua titularidade ao final de 2022 – presumindo-se, conforme a norma, que possuíam conhecimento do fato posteriormente publicado.

No entanto, a CPI aberta pela Câmara dos Deputados concluiu que não haveria como apontar os responsáveis pelo rombo bilionário.

Mais recentemente, houve a notícia relativa à empresa 123milhas, que negocia(va) milhas de companhias áreas em um mercado criado para este fim, mas sem autorização legislativa para tanto. Novamente noticiam-se instituições financeiras na compra de créditos potencialmente “podres”[1]. No caso, pior, não propriamente podres, mas de consumidores – que potencialmente até poderiam pedir o cancelamento desses pagamentos futuros para evitar maiores prejuízos (cancelamento, sem receber o já pago, que precisa, por regra recuperacional, sujeitar-se à “par conditio”). Ora, como pode uma instituição financeira – ainda mais pública como o Banco do Brasil! – comprar créditos de seus próprios clientes.

Ainda, no último dia 14, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) instaurou processo administrativo para investigar incorreções nos Balanços Patrimoniais da companhia Magazine Luiza, eis que “as demonstrações financeiras do ano passado e as do primeiro semestre deste ano tiveram, em conjunto, uma redução de R$ 1,3 bilhão da conta de fornecedores”.

Enfim, se durante as últimas décadas as instituições de governança corporativa evoluíram de forma exponencial – principalmente após a sanção a SOx, nos EUA – por qual motivo fraudes deste tipo continuam acontecendo?

A resposta, defendemos, perpassa pela questão de custos, racionalidade e incentivos.

Os membros dos órgãos de fiscalização das companhias – incluindo assembleias gerais e auditores – incorrem em altos custos de coordenação e monitoramento, o que torna cara a constatação de fraudes antes de sua ocorrência. Por outro lado, os indivíduos potencialmente beneficiados por fraudes são racionais, buscam maximizar o próprio bem-estar e respondem a incentivos, sejam eles positivos ou negativos.

Mais especificamente sobre os Auditores Independentes pode haver problema no desenho regulatório, pois, sendo, igualmente, indivíduos (limitadamente) racionais, possuem incentivos (no jargão econômico) para corroborar com os “erros” ou fraudes contábeis.[2] Ou seja, além dos custos de coordenação e monitoramento, existe ainda a variável do desenho de incentivos para beneficiar aquele que paga a conta.

Enfim, Becker, Nobel de Economia, levantou a hipótese sobre os motivos pelos quais um indivíduo racional decide cometer, ou não, um ilícito econômico. Para o autor, o lucro do crime é a força que incentiva o indivíduo a praticá-lo, e a dor da punição é a força empregada para impedi-lo. Se o produto do crime for maior que a força da punição, o crime será cometido – a recíproca é verdadeira.

Por conseguinte, os potenciais criminosos econômicos irão analisar três variáveis para tomar a decisão de praticar, ou não, determinada fraude: (i) benefício do crime; (ii) custos da severidade da pena; e (iii) probabilidade de aplicação desta pena.

Assim, “para que um crime seja cometido o resultado final dessa análise custo-benefício terá que ser positivo”. Por exemplo: y(x) – p(x) * f(x) > 0” – sendo (y = benefício do crime; f = severidade da pena; e p = probabilidade de aplicação da pena)[3]. Ressalva-se que a fórmula é diretamente aplicável a casos quantitativos, nos quais valores numéricos podem ser atribuídos às variáveis. Em situações qualitativas, onde a severidade da pena é expressa de forma subjetiva, como no exemplo da inabilitação do acusado, a análise se torna mais complexa devido à natureza dos termos, que não podem ser facilmente traduzidos em valores numéricos precisos.

Apenas à título exemplificativo, portanto, trazendo a análise numérica à realidade brasileira, as penas impostas pela CVM em casos de ilícitos praticados podem ser: absolvição, multa, advertência, inabilitação, proibição e suspensão (em ordem de severidade). Dentre 4.236 casos julgados pela CVM, envolvendo pessoas naturais, entre 25/01/2000 e 26/03/2019, 46,8% foram absolvidas, 40,4% sofreram uma pena de multa, 6,1% advertência, 4,9% inabilitação, 1,3% proibição e 0,5% suspensão[4].

Conforme explicamos acima, ateremo-nos à análise custo-benefício relativamente às multas aplicadas, eis que se tratam de sanções que podem ser monetariamente expressadas.  Observa-se que: y(x) -0,404 * f(x) > 0, ou seja, para qualquer valor de y(x) > 0,404 * f(x), a inequação se mantém satisfeita, e a fraude compensaria. Como o intervalo específico de valores para y(x) dependerá das magnitudes e relações entre y(x) e f(x), tomamos, aderindo ao contexto atual e a partir da mesma base de dados, a mediana de multas aplicadas em processos categorizados como “ilícitos de mercado e informacionais”, estabelecida em R$ 200.000,00.

Neste cenário, conclui-se que qualquer valor de y(x) superior a R$ 80.800,00 resultaria em uma decisão favorável à prática de fraudes[5]. Percebemos que não é necessário um benefício teórico muito expressivo para que o resultado da análise custo-benefício seja positivo.

Por isso, a evolução dos mecanismos de governança é apenas uma das nuances a ser desenvolvida para a perfectibilização do mercado e, sozinha, parece não ser muito efetiva. É preciso, como já defendemos no passado, a “mão pesada” do estado. Explica-se. As normas que regulam a atuação dos agentes econômicos são Instituições “que moldam e ordenam as interações entre indivíduos e grupos de indivíduos, produzindo padrões relativamente estáveis e determinados na operação do sistema econômico”[6].

Essas Instituições, por sua vez, são compostas por três pilares: regulativo, normativo e cognitivo. A dimensão regulativa é particularmente relevante para a presente análise, pois é nesse âmbito que, em conjunto, definem-se as normas de comportamento, monitora-se o seu cumprimento e aplicam-se sanções em caso de descumprimento.

Dito isso, estamos lidando com um tripé de objetos que deve, necessariamente, ser integralmente observado para garantir a eficácia do sistema. Sem o devido monitoramento e, principalmente, sem as devidas penalidades (enforcement), a simples evolução dogmática da governança corporativa não possuirá o condão de surtir os efeitos desejados.

Deduzimos, a priori, que esta é uma análise válida para explicar os motivos pelos quais grandes fraudes continuam a ocorrer, mesmo que a tecnologia da governança tenha, supostamente, avançado nas últimas décadas: os policy makers empreenderam todos os seus esforços no binômio normas-monitoramento, mas negligenciaram a faceta do enforcement. E, a propósito, por onde anda o Ministério Público Federal e as condenações eficientes do Poder Judiciário?

[1] https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/noticia/2023/11/13/divida-da-123-milhas-com-banco-do-brasil-pode-chegar-a-r-448-milhoes-diz-auditoria.ghtml.

[2] “John Coffee é categórico ao afirmar que as firmas de auditoria externa têm mais lucros prestando consultoria do que auditando – por exemplo, ele recebe um incentive fee pela qualidade de seu trabalho de consultoria – o que pode fazê-lo agir de maneira oportunista, maquiando dados ou colocando a empresa em riscos reputacionais […] Não podemos esquecer, ainda, que em diversas fraudes houve a participação dos auditores externos como “cúmplices”. O caso do Banco Panamericano, por exemplo, passou “pelo crivo de diversas instituições, em especial, empresas de auditoria, mas só foram descobertas […] pelo Banco Central empresa em riscos reputacionais” (CARDOSO, Matheus F. Poletto. Conflitos de Interesses nas Companhias: Contratos e Incentivos nas Relações Fiduciárias. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2023. p. 104.

[3] COOTER, Robert. D.; ULEN, Thomas. Direito e Economia. Trad. SANDER, Luis Marcos; COSTA, Francisco A. 5ª Ed. Porto Alegre: Bookman, 2010. p. 463-467.

[4] NUNES, Marcelo Guedes; BERGER, Renato. Observatório do Mercado de Capitais: Atividade Disciplinar da CVM. Associação Brasileira de Jurimetria. Relatório de 12 de novembro de 2020. Disponível em: https://abj.org.br/cases/obsmc/. p. 37.

[5] Vale ressaltar que o cálculo é simplificado, desconsiderando diversas variáveis qualitativas, como a natureza da fraude em si, as penas aplicáveis, além de riscos de incorrer em custos reputacionais (variáveis que aumentariam o valor y(x)) e a probabilidade de eventual fraude ser efetivamente constatada posteriormente à sua concretização (variável que diminuiria o valor y(x)).

[6] NORTH, Douglass. Institutions, Institutional Change, and Economic Performance. Cambridge: Cambridge University Press. 1991. p. 3