A Constituição da República do Brasil é extensa em assegurar direitos e garantias fundamentais, e pródiga na regulamentação de variados temas, que incluem infância e juventude, ambiental, tributário, desportivo, só para citar alguns.
Como reflexo, tem-se uma intensa judicialização, que sobrecarrega o Poder Judiciário, especialmente o Supremo Tribunal Federal (STF). Atualmente, conforme o portal Corte Aberta[1], existem 24.131 processos em tramitação, com 77.252 processos recebidos em 2023. Além do número de ações, há um segundo grande desafio: a complexidade das matérias levadas ao tribunal.
Diversas ações têm levado ao tribunal litígios estruturais ou com grande impacto econômico, podendo ser citadas como exemplo: o estado de coisas inconstitucional do sistema prisional (ADPF 347); a letalidade policial no Rio de Janeiro (ADPF 635); a proteção da população indígena e quilombola na pandemia de Covid-19 (ADPFs 709 e 742); a proteção à população em situação de rua (ADPF 973); a política de proteção à Amazônia Legal (ADPF 760); o racismo estrutural (ADPF 976); a correção monetária do FGTS (ADI 5090); questionamentos sobre o novo regime de precatórios (ADIs 7047 e 7064).
O crescimento de demandas envolvendo políticas públicas e com grandes impactos econômicos fez com que o STF assumisse um compromisso com o tratamento adequado dos conflitos, resultando na criação de estruturas específicas para apoiar os ministros na prestação da tutela jurisdicional, seja por meio de soluções consensuadas, seja disponibilizando equipe técnica multidisciplinar e especializada na análise de processos estruturais e complexos.
Diante disso, o ministro Luís Roberto Barroso, ao assumir a presidência do Supremo Tribunal Federal, criou a Assessoria de Apoio à Jurisdição (AAJ), que integra o Núcleo de Soluções Consensuais de Conflitos (NUSOL), o Núcleo de Processos Estruturais e Complexos (NUPEC) e o Núcleo de Análise de Dados e Estatística (NUADE), demonstra o compromisso institucional com uma prestação jurisdicional mais eficiente.
Assim, o STF vem aprimorando o exercício de sua jurisdição constitucional, abrindo espaço para diálogos processuais, materiais e interinstitucionais, podendo ser qualificado como verdadeiro tribunal multiportas, ampliando a sua resiliência para contornar ou reduzir tensões, especialmente quando em jogo questões entre Poderes[2]. A seguir, faremos breve apresentação de como o NUSOL e o NUPEC podem contribuir com uma prestação jurisdicional efetiva e apta a melhor proteger os direitos fundamentais.
1) Núcleo de Soluções Consensuais de Conflitos (NUSOL)
A quantidade e a complexidade das questões que chegam ao STF ampliaram o seu comprometimento com a pacificação social instituída no preâmbulo da Constituição Federal[3], que se concretiza por meio do exercício da jurisdição constitucional tradicional (adjudicatória) e, ainda, por meio de métodos consensuais de resolução de conflitos.
Assim, técnicas como conciliação, mediação, cooperação judiciária, convenções processuais, acordo de não persecução penal, colaboração premiada, têm sido aplicadas aos processos de competência do STF, em prestígio ao princípio da consensualidade.
Com reflexo, importantes acordos já foram firmados no âmbito do STF, podendo exemplificar: a homologação de proposta de ajuste sobre o direcionamento de valores oriundos da Operação Lava Jato, tendo sido determinada a imediata destinação de R$ 1,6 bilhão ao Ministério da Saúde para custeio de ações de combate ao coronavírus (Covid-19) (ADPF 568); o acordo homologado pelo ministro Ricardo Lewandowski, em 22/03/2023, possibilitando a gestão compartilhada do Arquipélago de Fernando de Noronha pela União e o estado de Pernambuco (ACO n. 3.568–PE); o acordo de não persecução penal firmado entre a Procuradoria-Geral da República e deputado federal Silas Câmara, em que responde pela prática da chamada “rachadinha”, tendo o parlamentar se comprometido a pagar multa de R$ 242 mil em até 30 dias (AP 864).
Com esses crescentes arranjos consensuais, o NUSOL foi criado para apoiar os gabinetes dos ministros na busca e implementação de soluções adequadas de conflitos processuais e pré-processuais, bem como promover a cooperação judiciária do STF com os demais órgãos do Poder Judiciário, tendo o ministro Luís Roberto Barroso designado Trícia Navarro Xavier Cabral, Juíza de Direito do Estado do Espírito Santo, como responsável pelo novo órgão.
O NUSOL fará a integração do Centro de Mediação e Conciliação (CMC/STF), regulado pela Resolução STF 697/2020, e do Centro de Cooperação Judiciária (CCJ/STF), regulado pela Resolução STF 775/2022, e poderá atuar, por exemplo: (i) no auxílio na triagem de processos que, por sua natureza, permitam a solução pacífica; (ii) na realização ou no apoio à realização de sessões de conciliação ou mediação, ou com o uso de outro método adequado de tratamento de controvérsias, por solicitação do Relator; e (iii) na promoção da cooperação judiciária entre STF e demais órgãos do Poder Judiciário, bem como com outros atores do sistema de justiça e da sociedade civil organizada.
2) Núcleo de Processos Estruturais e Complexos (NUPEC)
Dentre as demandas complexas em trâmite no tribunal, chama atenção o crescimento no número de ações estruturais, que têm como objetivo modificar um estado de coisas que está em desconformidade à Constituição Federal, gerando graves e sistemáticas violações a direitos fundamentais de grupos vulneráveis[4]. Em ações desse tipo, o Judiciário costuma determinar que os entes públicos competentes elaborem um plano de ação para transformar a realidade inconstitucional, retendo a jurisdição sobre o caso para monitorar os avanços no enfrentamento do problema[5].
Pela descrição das ações estruturais, percebe-se que não se trata de tarefa fácil. Ainda assim, é um desafio que o tribunal aceitou enfrentar, especialmente pelo seu compromisso com a efetivação dos direitos fundamentais de grupos minoritários e vulneráveis. Além disso, casos complexos com grandes impactos econômicos exigem uma análise multidisciplinar, focando nas consequências das decisões da Suprema Corte. Neste contexto, o uso efetivo de argumentação e raciocínio econômicos pode enriquecer o debate sobre os efeitos e consequências dessas decisões.
O NUPEC nasce com a missão de assessorar a presidência e os relatores que lidam com ações estruturais e complexas, contribuindo para o desenvolvimento de uma tutela estrutural adequada nesses casos.
Reconhecendo que as questões tratadas em processos estruturais e complexos vão além dos aspectos puramente jurídicos, o ministro Luís Roberto Barroso montou uma equipe interdisciplinar, composta por: Matheus Casimiro Gomes Serafim, que pesquisa os processos estruturais na jurisdição constitucional; Marcelo Dias Varella, gestor de políticas públicas e com passagem em vários cargos de direção do Executivo Federal; Guilherme Mendes Resende, que atuou como economista-chefe do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) por sete anos; e Carina Lellis Nicoll Simões Leite, assessora do gabinete do ministro desde 2017.
O núcleo tem como atribuição apoiar, sob demanda, a atuação dos gabinetes na identificação e no processamento de ações estruturais e complexas. A título ilustrativo, o NUPEC poderá, mediante solicitação da presidência dos gabinetes de ministros: (i) emitir notas técnicas e relatórios sobre temas discutidos em processos estruturais e outros processos dotados de relevância e complexidade, especialmente processos com grande potencial de impactos econômicos; (ii) auxiliar na construção de indicadores para monitoramento e avaliação da efetividade das medidas determinadas nesses processos; e (iii) prestar apoio para a supervisão e o monitoramento da implementação das decisões, inclusive mediante a produção de relatórios e o suporte para a criação de Salas de Monitoramento para cada processo estrutural; (iv) realizar audiências e reuniões técnicas com as partes envolvidas em ações estruturais, para promover o diálogo institucional e a implementação de medidas específicas.
3) Núcleo de Análise de Dados e Estatística (NUADE)
O contexto jurídico atual é marcado por uma crescente busca por transparência, responsabilidade e eficácia na tomada de decisões judiciais. Nesse cenário, o uso de dados e análises estatísticas desempenha um papel crucial para atender a essas demandas e otimizar a gestão do acervo processual. Assim, na gestão do ministro Luís Roberto Barroso a governança e a gestão orientada a dados também ganharam destaque.
O Núcleo de Análise de Dados e Estatística (NUADE) agregou o processo de trabalho vinculado anteriormente à Secretaria de Gestão Estratégica, com a finalidade de aprimorar e aproximar esta atividade à prestação jurisdicional.
O núcleo é composto por dois especialistas: Pâmella Edokawa, que atuará como assessora-chefe de Apoio à Jurisdição, e Euler Alencar, mestre em Estatística pela UnB, que atuará no apoio aos projetos relacionados a dados e informações. Também conta com o apoio de dois servidores e dois colaboradores.
A equipe, que apoia a presidência e os gabinetes, tem como principais atribuições: (i) coletar e analisar dados pertinentes à prestação jurisdicional e apoiar os Núcleos de Processos Estruturais Complexos (NUPEC) e de Solução Consensual de Conflitos (NUSOL) nos mapeamentos, pareceres, notas técnicas e indicadores estatísticos; (ii) fornecer relatórios, painéis, informações e análises estatísticas aos gabinetes dos ministros, auxiliando na gestão do acervo processual; (iii) gerir os painéis do Corte Aberta e disponibilizar informações ao público externo, garantindo o acesso amplo e transparente aos dados e estatísticas relacionados à jurisdição do Supremo Tribunal Federal; e (iv) apoiar projetos de pesquisas, estudos ou projetos tecnológicos relacionados à análise de dados do yribunal.
Conclui-se, portanto, que o STF densifica o sistema de Justiça Multiportas[6], que agrega técnicas inovadoras diferenciadas ao tratamento dos conflitos, ampliando a qualidade do acesso à justiça e promovendo soluções mais eficientes.
[1] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Painel Corte Aberta. 2023. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/hotsites/corteaberta/. Acesso em: 14. 12.2023.
[2] Sobre o tema, cf. Saul Tourinho Leal. Jurisdição Constitucional resiliente: a experiência brasileira. Revista da AJURIS – Porto Alegre, v. 50, n. 154, Julho, 2023, p. 403-452.
[3] BRASIL. Constituição Federal. Preâmbulo: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.”
[4] CASIMIRO, Matheus; FRANÇA, Eduarda Peixoto da Cunha; NÓBREGA, Flavianne Fernanda Bitencourt. Processos estruturais e diálogo institucional: Qual o papel do Poder Judiciário na transformação de realidades inconstitucionais?. Revista Estudos Institucionais, v. 8, n. 1, p. 105-137, 2022.
[5] SERAFIM, Matheus Casimiro Gomes. Processo estrutural democrático: participação, publicidade e justificação. 2023. 357 f. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2023. p. 25.
[6] Navarro, Trícia. Justiça multiportas. Indaiatuba: Foco, 2024.