Essência vs. forma no Carf

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Sem sombra de dúvida, a investigação sobre o tema das provas nos leva a uma das questões mais importantes da Ciência do Direito, pois nos remete à definição da verdade. O problema da verdade no discurso científico sempre foi um dos maiores desafios da teoria do conhecimento, sob a premissa de que a ciência busca revelar a realidade através de proposições verídicas.

A expressão verdade tem suas origens etimológicas no latim veritas, denotando algo real ou verdadeiro. A filosofia, em particular, tem na busca pela verdade um de seus problemas fundamentais.

A verdade será sempre uma construção e nunca algo passível de ser descoberto ou então abstraído do objeto. Não existe uma verdade absoluta que reclame validade universal, mas tão somente uma verdade construída nos limites do sistema de referência adotado, levando-se em conta as circunstâncias de tempo e espaço na qual se encontra inserida. Por isso que a verdade é sempre relativa.

A concepção de que a verdade é relativa e se encontra vinculada ao sistema em que está inserida é de extrema importância para o sistema do Direito positivo, cujo conteúdo é manifestado pelo conjunto de normas jurídicas válidas, elaboradas em conformidade com as regras do próprio sistema jurídico.

No contexto do processo administrativo fiscal, cuja principal função é o exercício do controle de legalidade dos atos administrativos, as autoridades julgadoras devem valorizar ao máximo a efetiva e concreta verificação dos fatos. Existe um poder-dever de decidir com base nos fatos tal como se apresentam na realidade, os quais não podem ser ignorados por aspectos meramente formais.

A exigência de forma e formalidade deve ser imposta apenas na medida em que for necessária e suficiente para que as ações da Administração Pública atinjam seus objetivos, assegurando, principalmente, os direitos dos administrados. As representações formais da verdade não podem comprometer a busca efetiva da realidade.

Seguindo essa premissa, o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) tem, cada vez mais, aplicado o princípio da primazia da realidade, fundamentado na prevalência da essência ou substância sobre a forma.

Embora esse princípio tenha surgido historicamente no Direito do Trabalho como uma forma de proteção ao trabalhador, sua aplicação é versátil e não serve apenas a uma das partes do processo, mas à promoção da justiça.

De acordo com Américo de Plá Rodrigues, “o princípio da primazia da realidade significa que, em caso de discordância entre o que acontece na prática e o que emerge dos documentos e acordos, deve-se dar prioridade ao primeiro, isto é, ao que sucede no terreno dos fatos”.[1]

No âmbito do Carf, existem diversos precedentes que aplicam o princípio da primazia da realidade, ou seja, a prevalência da essência ou substância sobre a forma. Essa aplicação ocorre tanto em decisões desfavoráveis quanto favoráveis ao contribuinte.

Isso ocorre porque se busca avaliar a relação jurídica com base em como ela se manifesta na prática, em vez de se restringir ao que está formalmente acordado. As discrepâncias entre a realidade e os documentos nem sempre são deliberadas; muitas vezes, resultam de erros não intencionais. A aplicação do princípio da primazia da realidade permite alcançar a verdade sem a necessidade de investigar a presença de má-fé, abarcando todas as circunstâncias possíveis.

No julgamento do acórdão Carf 402-006.179[2], proferido em sessão de 9 de maio de 2018, o voto do conselheiro estabeleceu uma conexão entre o princípio da primazia da realidade e o princípio da verdade material. Ele elucidou que o primeiro “visa à priorização da verdade real em detrimento da verdade formal”, enquanto o segundo “busca a realidade dos fatos tal como ocorreram”.

Concluiu-se, então, que ambos os princípios seriam aplicáveis ao processo administrativo fiscal. No caso em discussão, embora os documentos anexados aos autos indicassem a existência de várias empresas, na prática, o serviço era prestado por uma única empresa. Tal fato justificaria a desconsideração da situação jurídica formalmente estabelecida.

Segundo consta do próprio acórdão, “nesse contexto, resta caracterizada a simulação e não planejamento tributário como pretende a Recorrente, impondo-se a desconsideração da relação meramente formal constatada pela autoridade lançadora, privilegiando-se a real vinculação da Recorrente […] com os trabalhadores que lhe prestaram serviços, não obstante o registro laboral junto às empresas aparentemente ‘terceirizadas’.”

No acórdão Carf 1301-006.962[3], proferido na sessão de 16 de maio de 2024, o voto também considerou a primazia da realidade. Admitiu-se que um contribuinte, mesmo não estando registrado na Junta Comercial, poderia ser reconhecido como sociedade empresária para fins de aproveitamento dos coeficientes reduzidos de presunção. Isso se deve ao fato de que, na prática, sua atividade e sua estrutura física demonstravam claramente tratar-se de uma sociedade empresária.

Conforme se verifica pela ementa do acórdão em questão, “a formalização da pessoa jurídica como sociedade simples não afasta, por si só, a sua natureza de sociedade empresária, quando os elementos constantes dos autos demonstram que a contribuinte exerce atividade econômica organizada.”

Igualmente, no julgamento do acórdão Carf 1301-006.763[4], proferido na sessão de 21 de fevereiro de 2024, considerou-se a prevalência da essência sobre a forma. Reconheceu-se que o contribuinte poderia se valer das regras referentes ao regime de apuração de competência, mesmo tendo informado por equívoco na DCTF a opção pelo regime de caixa.

Ao analisar o voto do relator, constata-se que “o contribuinte, por um lapso, fez constar na sua DCTF de janeiro de 2016 que as variações cambiais permaneceriam sendo reconhecidas pelo regime de caixa. Na prática, todavia, a empresa efetivamente reconheceu as receitas e despesas aplicáveis no cálculo do lucro real e da base de cálculo da CSLL pelo regime de competência, ou seja, essencialmente contabilizou e pagou IRPJ e CSLL (devidos com relação aos fatos geradores de 2016) considerando a premissa de que as variações cambiais estavam sujeitas ao regime de competência previsto artigo 30, §1º, da Medida Provisória 2158-35/2001”.

O voto prossegue afirmando que “em tais casos, é injustificável que o contribuinte não possa se valer da opção que ele efetiva e materialmente exerceu. Ou seja, há de prevalecer a essência sobre a forma”.

A ementa deste julgado também é bastante elucidativa ao asseverar que “constatado que o contribuinte efetiva e materialmente realizou a alteração do seu regime de apuração de variações cambiais, equivocando-se tão somente ao não informar tal modificação em DCTF, há de se buscar no caso a verdadeira essência dos fatos. O mero erro no preenchimento da declaração não é capaz de desfazer os atos praticados pelo contribuinte. Se formalmente o contribuinte se apresentava de uma forma, mas materialmente se comportava de outra, há de prevalecer no caso a substância sobre a forma”.

Com efeito, a primazia da realidade revela-se um importante aliado para os julgadores administrativos ao analisarem operações e negócios jurídicos tributários. Contudo, isso não implica que tais operações e negócios possam ser desconsiderados sem fundamentação adequada.

Deve-se adotar uma abordagem cuidadosa ao vincular o referido princípio à teoria do propósito negocial. Em conformidade com o princípio da legalidade, não se pode permitir que as autoridades julgadoras desconsiderem a forma jurídica de um negócio jurídico não simulado por meio da aplicação do princípio da prevalência da substância sobre a forma.

A primazia da realidade, ou a prevalência da essência sobre a forma, aplica-se unicamente quando a realidade demonstra de maneira inequívoca algo completamente distinto do que foi formalmente registrado.

[1] RODRIGUES, Américo de Plá. Princípios do direito do trabalho. 3.ed. São Paulo: LTR, 2000. p. 339

[2] PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO. FRACIONAMENTO DAS ATIVIDADES. UTILIZAÇÃO DE EMPRESAS INTERPOSTAS. ABUSO DE FORMA. AUSÊNCIA DE AUTONOMIA OPERACIONAL E PATRIMONIAL. ADMINISTRAÇÃO ÚNICA E ATÍPICA. PREVALÊNCIA DA SUBSTÂNCIA SOBRE A FORMA. PRINCÍPIO DA PRIMAZIA DA REALIDADE. PRINCÍPIO DA VERDADE MATERIAL. SIMULAÇÃO. CARACTERIZAÇÃO. MULTA QUALIFICADA. Não é vedado o planejamento tributário, mas a prática abusiva, como a simulação de relações entre empresas com objetivo claro de obter vantagens tributárias. O abuso de forma viola o direito e a fiscalização deve rejeitar o suposto planejamento tributário que nela se funda, cabendo a requalificação dos atos e fatos ocorridos, com base em sua substância, para a aplicação do dispositivo legal pertinente. Não há nesse ato nenhuma violação dos princípios da legalidade ou da tipicidade, nem de cerceamento de defesa, pois o conhecimento dos atos materiais e processuais pela Recorrente e o seu direito ao contraditório estiveram plenamente assegurados. (Conselheiro relator Luis Henrique Dias Lima)

[3] AUTO DE INFRAÇÃO. LUCRO PRESUMIDO. COEFICIENTE REDUZIDO DE PRESUNÇÃO. ATIVIDADE HOSPITALAR. SOCIEDADE SIMPLES. A formalização da pessoa jurídica como sociedade simples não afasta, por si só, a sua natureza de sociedade empresária, quando os elementos constantes dos autos demonstram que a contribuinte exerce atividade econômica organizada, conforme requisito legal do art. 15, § 1º, inc. III, alínea “a”, da Lei nº 9.249, de 1995. (Conselheiro relator Rafael Taranto Malheiros)

[4] REGIME DE APURAÇÃO DE VARIAÇÕES CAMBIAIS. ALTERAÇÃO. NECESSIDADE DE INFORMAÇÃO EM DCTF. OBRIGAÇÃO ACESSÓRIA. EQUÍVOCO NO PREENCHIMENTO DA DECLARAÇÃO. MERO ERRO FORMAL. PREVALÊNCIA DA SUBSTÂNCIA SOBRE A FORMA. Constatado que o contribuinte efetiva e materialmente realizou a alteração do seu regime de apuração de variações cambiais, equivocando-se tão somente ao não informar tal modificação em DCTF, há de se buscar no caso a verdadeira essência dos fatos. O mero erro no preenchimento da declaração não é capaz de desfazer os atos praticados pelo contribuinte. Se formalmente o contribuinte se apresentava de uma forma, mas materialmente se comportava de outra, há de prevalecer no caso a substância sobre a forma. (Conselheiro relator Marcelo Jose Luz de Macedo)