No último dia 4 de junho, aconteceu na Comissão da Amazônia e dos Povos Originários e Comunidades Tradicionais da Câmara dos Deputados uma audiência pública com o intuito de debater os direitos da natureza.
A audiência ocorreu no contexto da propositura de uma PEC, cuja primeira assinatura é da deputada indígena Célia Xakriabá (PSOL-MG), que almeja dar nova redação ao inciso III, do Título I, do artigo 1° da Constituição Federal, para conferir dignidade aos seres não humanos, acrescentar o capítulo VI ao Título II e dar nova redação ao artigo 225 e seu parágrafo 4°, para conferir direitos fundamentais aos seres pertencentes à natureza e necessários para sua preservação.
Duas perguntas emergem: o que seriam direitos da natureza? E já não estariam estes direitos protegidos pelo Direito Ambiental?
O Direito Ambiental, de fato, protege a natureza. Porém, neste ramo do direito o sujeito é a pessoa humana que tem o direito a um meio ambiente saudável. O bem a ser tutelado é o meio ambiente. Logo, o meio ambiente é antes objeto que sujeito.
Na perspectiva dos direitos da natureza o convite é para uma virada ontológica na equação que envolve estes sujeitos e bens. A natureza (Seres humanos e não humanos, vivos e não vivos) passa a ser sujeito de direito. A proteção direciona-se à teia de interações multiespécie que garante a existência do planeta. Isto é dizer que, ao se abandonar a matriz de pensamento antropocêntrico, o ser humano não mais possui preeminência ontológica sobre os demais seres e deixa de ter, ainda que de maneira regulamentada, o direito quase que irrestrito de explorar o que nomeou de “recursos naturais”.
Alguns exemplos
A PEC se inspira em legislações com mais de quinze anos de existência e busca introduzir conceitos da cosmologia indígena na dogmática jurídica de matriz ocidental. Já há exemplos práticos pelo mundo e também no Brasil. Vejamos.
Em 2006, na cidade de Tamaqua, na Pensilvânia (EUA), foi editada a Portaria 612, que proibiu a aplicação de lodo de esgoto na terra e reconheceu ecossistemas como “pessoas” para fins de aplicação da lei. Essa legislação pioneira marcou um desenvolvimento significativo no movimento por estes direitos.
Em 2008, o Equador foi o primeiro país a reconhecer os direitos da natureza na sua Constituição, ao dispor que a natureza tem o “direito de existir, persistir, manter e regenerar seus ciclos vitais, estrutura, funções e processos evolutivos”.
Em 2017, o Parlamento da Nova Zelândia declarou que o rio Whanganui tem os mesmos direitos de uma pessoa, tornando-se o primeiro rio do mundo a ser reconhecido como uma entidade viva (Whanganui River Claims Settlement Act 2017). Com isso o rio passou a poder ser representado em processos judiciais, por meio dos seus dois guardiões nomeados pelo Parlamento, um membro do povo Iwi Whanganui e um representante da Coroa neozelandesa.
Na Índia, o Tribunal Superior de Uttarakhand reconheceu, em 2017, os rios Ganges e Yamuna como seres vivos (caso Mohd. Salim v. Estado de Uttarakhand e outros).
Em 2018, a Corte Suprema de Justiça da Colômbia reconheceu a floresta amazônica como uma “entidade sujeita de direitos” (STC 4360-2018), o que implica em obrigações do governo para proteger, conservar e restaurar a floresta.
Em 2019, Uganda propôs uma mudança em sua legislação para reconhecer os direitos da natureza (Ato Nacional Ambiental 2019, Seção 4), refletindo uma tendência crescente em África e em outros continentes de adotar abordagens legais mais inclusivas para a conservação ambiental.
No Brasil, em Guajará-Mirim (RO), a Lei Municipal 2.579/2023, de autoria do vereador indígena Francisco Oro Waram (PSB), reconheceu o rio Laje – Komi Memen como “ente vivo e sujeito de direitos”. Estes direitos incluem a manutenção de seu fluxo natural, a capacidade de nutrir e ser nutrido pela floresta e pela biodiversidade endêmica, e a proteção contra intervenções prejudiciais.
Em Porteirinha (MG), a Câmara Municipal aprovou por unanimidade, no último dia 2 de abril, a Lei 2251/2024, que reconhece e protege os direitos do rio Mosquito, protegendo os direitos de um ente não humano, garantindo a manutenção de suas condições naturais e a interação biocultural com as comunidades locais. A lei também institui um comitê guardião para o rio.
No STF o tema, embora tenha agregado o reconhecimento da dimensão ecológica do estado de direito, não avançou para o reconhecimento dos direitos de sujeitos não humanos (ver ADI 4.983/vaquejada no Ceará e RE 153.531/farra do boi em Santa Catarina).
Há diversos outros exemplos tanto no Brasil quanto no restante do planeta. Experiências que, por serem inovadoras e proporem a mudança de um paradigma enfrentam grandes barreiras e dificuldades de implementação.
Uma mudança ampla de costumes e tradições
A proposta deste giro biocêntrico[1] resulta, deliberadamente ou não, no questionamento do modelo de desenvolvimento adotado atualmente. Ao questionarmos a natureza como objeto estamos questionando a noção de progresso material, dependente do crescimento econômico e baseado na apropriação dos recursos naturais. Ou seja, questiona-se a valoração utilitária da natureza enquanto riqueza, sendo que esta é apenas uma das possibilidades de valoração. [2]
A PEC de autoria da deputada Célia não parece propor uma natureza intocada, mas antes, que múltiplas valorações entrem na equação do que seja tanto a natureza quanto a sustentabilidade. Penso que a deputada está propondo um olhar para a natureza orientado a resolver necessidades-chave não apenas dos humanos, combater o consumo de luxo e a acumulação de capital gerada pela exploração dos recursos naturais.
Enunciando uma corrente de sustentabilidade que ela denominou de “revolvimento sustentável” (e não desenvolvimento sustentável) a deputada propõe o reconhecimento de um valor intrínseco a ser reconhecido na natureza, seus entes humanos, não humanos e mais que humanos (mas esta já é outra discussão que não caberia por aqui).
Ou seja, não se trata de descartar a valoração econômica que explica o capital natural, mas de colocá-la em simetria com outros tipos de valoração, um revolvimento sustentável multidimensional, por assim dizer. Para tanto, se trata de olhar para além do valor utilitário dos seres. Não pensar apenas no seu uso, ainda que sustentável, mas resgatar e proteger diferentes relacionalidades entre os seres.
O grande desafio de reconhecer direitos à natureza é que mais uma vez se aposta na judicialização como estratégia para garantir direitos. E nenhum problema há nisso, especialmente quando uma sociedade tende fortemente a identificar direitos da natureza como algo “de esquerda”, “hippie” ou “utópico”. Assim, a proposta da PEC tem o mérito (e também o desafio político) de oferecer mais ferramentas para quem deseje defender a natureza, notadamente os advogados indígenas.
Os povos indígenas representam apenas 5% da população global e, apesar disso, protegem 80% de toda a biodiversidade remanescente no mundo. [3] Ao que tudo indica, vale a pena os escutar e pedir aos parlamentares que deem seu apoiamento à proposta.
[1] GUDYNAS, Eduardo. Direitos da Natureza: Ética biocêntrica e políticas ambientais. São Paulo: Editora Elefante, 2019, p. 254.
[2] JAMIESON, Dale. The Rights of Nature: Philosophical Challenges and Pragmatic Opportunities In. More Than Human Rights. New York: Cesar Garavito Editor, 2024, p. 100.
[3] World Bank (2003). Implementation of operational directive 4.20 on indigenous peoples: an independent desk review, World Bank, Washington, DC.