Recente decisão liminar proferida pelo ministro Cristiano Zanin, na ADI 7633, em que se discute a não renovação da desoneração tributária em segmentos estratégicos da economia, chamou atenção para um dispositivo que ingressou na Constituição Federal de 1988 sem suscitar maiores debates, de início. Embora seja de fundamental importância para a Constituição Financeira e a própria manutenção do equilíbrio fiscal, orçamentário e institucional entre os poderes, o art. 113 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal (ADCT) tem desafiado interpretações divergentes.
O art. 113 do ADCT prevê:
“Art. 113. A proposição legislativa que crie ou altere despesa obrigatória ou renúncia de receita deverá ser acompanhada da estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro”.
O dispositivo foi introduzido em nosso ordenamento pela Emenda Constitucional 95, de 2016, que instituiu o Novo Regime Fiscal (NRF), o qual pelo prazo de 20 anos deveria estabelecer limites individualizados para as despesas públicas primárias, isto é, a definição de um teto de gastos linear para as despesas públicas relativas aos serviços públicos prestados à sociedade, destacando-se aqueles nas áreas da saúde e da educação.
Substituído o NRF pelo Regime Fiscal Sustentável (RFS), com a aprovação da Emenda Constitucional 126, de 2022, e da Lei Complementar Federal 200, de 2023, novos fundamentos de equilíbrio fiscal e orçamentário foram adotados em nosso sistema constitucional, que passou a ter por pilares constitutivos não só a estabilidade macroeconômica do país, mas também as condições de crescimento socioeconômico[1].
Nada obstante, remanesce a discussão em torno da melhor exegese do art. 113 do ADCT: (i) norma não vigente, cujo âmbito normativo teria se exaurido em decorrência da revogação do “NRF” pelo “FRS”; (ii) norma veiculadora de mera obrigação acessória consistente na elaboração do estudo de impacto orçamentário pelo autor do projeto de lei; ou (iii) norma decorrente da Constituição Financeira, explicitadora de princípios estruturantes de equilíbrio fiscal e orçamentário do Estado.
Pela primeira e mais restritiva das interpretações (i), assume-se que a exigência do art. 113 do ADCT deveria ser restrita à União, visto que o NRF foi expressamente arquitetado para as finanças públicas federais, conforme expressa redação do art. 106 do ADCT[2]. Por conseguinte, revogado o “NRF”, inexistiria a razão de ser do art. 113, que teria sido revogado tacitamente.
Conforme se verá logo adiante, considerado o método teleológico e sistemático de interpretação e sobretudo a eficácia autônoma de que se reveste a disposição, é inequívoco que a regra do art. 113 do ADCT não tem sua validade umbilicalmente ligada ao “NRF”; em consequência, não soa constitucionalmente adequada a intepretação de que, revogado este regime, revogada estaria a exigência de apresentação da estimativa do impacto orçamentário e financeiro do projeto de lei.
A segunda corrente interpretativa (ii) valoriza os elementos históricos e gramaticais dos métodos de interpretação jurídica[3]. Observa que a regra do 113 do ADCT foi introduzida pela Emenda 95/2016, num contexto em que se procurava estabelecer maior rigor no controle dos gastos públicos em face da severa recessão econômica e aumento do endividamento das contas governamentais. Tinha o objetivo de possibilitar aos parlamentares tomarem conhecimento sobre o real impacto financeiro das propostas a serem apreciadas[4], evitando-se a aprovação de medidas que acarretassem o aumento da despesa pública. É o que se infere do parecer do relator da Comissão Especial da Câmara dos Deputados:
“Dentro desse raciocínio, sugerimos também o acréscimo dos arts. 108 e 109 ao ADCT, que permitem que os parlamentares estejam cientes, no momento da apreciação das proposições, do custo das decisões a serem tomadas, bem como de sua compatibilidade com o Novo Regime Fiscal”.
A informação prévia quanto a eventuais efeitos financeiros permitiria aos parlamentares terem real dimensão do impacto orçamentário na votação de qualquer medida legislativa que envolvesse despesa pública. O sentido e o alcance da norma do 113, nessa perspectiva, não iriam além do estabelecimento de mera obrigação acessória a ser cumprida pelo autor do projeto de lei.
Esse dispositivo se limitaria a instituir uma obrigação formal constitucional, que seria adimplida mediante simples apresentação dos estudos de estimativa de impacto orçamentário e legislativo, independentemente da existência de indicação da efetiva existência de recursos necessários para fazer face à despesa a ser criada, conforme expõe Roberta Simões[5]:
“Ao ter sido inserida no texto da Constituição, a norma do artigo 113 do ADCT, inevitavelmente, estabelece uma condição de validade formal, cria mais um parâmetro e amplia as hipóteses do controle judicial de constitucionalidade das proposições legislativas, especialmente as que concedem benefícios tributários”.
Em nossa visão, essa interpretação revela apenas a faceta (ou dimensão) predominantemente formal do art. 113 do ADCT, na qual se valoriza o aspecto procedimental condizente com a obrigação acessória de apresentação dos estudos de impacto orçamentário e financeiro. Contudo, é possível compreendê-lo sob uma dimensão material ou substantiva. É precisamente por esse viés que se dá ensejo a uma terceira possibilidade hermenêutica do art. 113 do ADCT (iii).
A dimensão substantiva do art. 113 se deixa revelar em face da própria natureza da Constituição Financeira, que, no campo da atividade administrativo-financeira do Estado, representa uma das grandes inovações da Constituição Federal de 1988, relativamente às anteriores Constituições, ao consagrar e estruturar o princípio do equilíbrio orçamentário. Nesse novo paradigma, a Constituição Financeira não é vista como um conjunto de princípios e regras isoladas em matéria de finanças, mas antes como um sistema performativo de competências, garantias e valores relativos à atividade financeira no contexto do Estado Democrático de Direito[6].
Se por Constituição Financeira devemos compreender esse complexo sistema de normas reguladoras das finanças públicas, estruturado para estabelecer rígido controle financeiro da atividade administrativa e legislativa do Estado e para enquadrar o Poder Público nos marcos do equilíbrio fiscal e orçamentário, então a regra do art. 113 do ADCT transforma-se em comando específico derivado (da Constituição Financeira), de sorte que sua validade e eficácia são independentes de quaisquer dos regimes fiscais em discussão (NRF ou RFS).
Tal intuição se evidenciou, dentre outras, no julgamento da ADI 5.816 (Rel. Min. Alexandre de Moraes, j. 5/11/2019), em que o Supremo Tribunal Federal decidiu que o art. 113 reveste-se de caráter nacional e se aplica a todos os entes federativos, justamente porque a mera textualidade ou caráter eminentemente formal não devem definir a tônica hermenêutica de sua aplicação. Conforme pontuou o relator Min. Alexandre de Moraes, referida obrigação constitucional não fez mais do que incorporar obrigação preexistente, já constante do art. 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).
Precisamente aí é que se tem exposta a dimensão substantiva do art. 113 do ADCT, pois, em verdade, ele incorpora, na seara constitucional, as disposições de controle, responsabilidade e equilíbrio fiscal já constantes na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), especificamente o previsto no art. 14 e seguintes, e na própria Constituição Federal, aperfeiçoando a efetividade dos princípios norteadores do sistema nacional de finanças públicas.
Sobre os princípios orçamentários, Marcus Abraham[7], com base no art. 167 da Constituição Federal, destaca que o “princípio orçamentário da limitação condiciona a realização de despesas e a utilização de créditos ao montante previsto no orçamento”.
Portanto, as informações sobre os efeitos financeiros e orçamentários de projetos de lei são imprescindíveis para sua adequação à Constituição Financeira, uma vez que, sem elas, não teria como assegurar que as despesas anunciadas na Lei Orçamentária Anual estariam devidamente calçadas nas receitas nela estimadas e previstas; e, em consequência, estaria comprometido outro princípio cardeal da Constituição Financeira, o “princípio orçamentário da programação”, que vê no orçamento público o caráter instrumental da gestão administrativa para viabilizar os planos de ação governamental em cada período[8].
Por outras palavras, as interpretações (i) e (ii) do art. 113 do ADCT revelam um conteúdo restritivo e incompatível com a Constituição Financeira, devendo-se, antes, interpretá-lo não só como norma definidora de obrigação formal do processo legislativo constitucional (dimensão formal), a exigir a simples apresentação dos estudos de impacto orçamentário e financeiro, mas também como norma de conteúdo substantivo que condiciona a constitucionalidade dos projetos de lei à observância das normas e princípios da Constituição Financeira (iii), o que também inclui os requisitos estipulados na Lei de Reponsabilidade Fiscal, de modo que a proposição normativa (eventualmente, lei futura), em criando novos gastos públicos, deverá indicar sua compatibilidade com a legislação orçamentária vigente (LOA, LDO e PPA) e as medidas compensatórias a serem adotadas a fim de se assegurar o equilíbrio fiscal e orçamentário.
[1] O art. 6º da EC 126, de 2022, prevê: “Art. 6º O Presidente da República deverá encaminhar ao Congresso Nacional, até 31 de agosto de 2023, projeto de lei complementar com o objetivo de instituir regime fiscal sustentável para garantir a estabilidade macroeconômica do País e criar as condições adequadas ao crescimento socioeconômico, inclusive quanto à regra estabelecida no inciso III do caput do art. 167 da Constituição Federal”.
[2] Assim está previsto no art. 106 do ADCT: “Fica instituído o Novo Regime Fiscal no âmbito dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social da União, que vigorará por vinte exercícios financeiros, nos termos dos arts. 107 a 1104 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias”. Cf. COSIMO, Jéssica Vishnevsky. Inconstitucionalidade de lei municipal pelo artigo 113 do ADCT, ativismo judicial e reforma política. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-dez-02/inconstitucionalidade-de-lei-municipal-pelo-artigo-113-do-adct-ativismo-judicial-e-reforma-politica/ [23/05/2024].
[3] Sobre os métodos interpretativos na teoria do direito e na teoria constitucional bem como sua importância na atualidade para a Ciência do Direito, recomendamos: KRELL, Andreas. Entre desdém teórico e aprovação na prática: os métodos clássicos de interpretação jurídica. Revista Direito GV: Vol. 10, n. 1, p. 295-320, jan-jun, 2014.
[4] Destaque-se que o art. 108 do Parecer equivale ao vigente art. 113 do ADCT. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_pareceres_substitutivos_votos?idProposicao=2088351. Observe-se, contudo, que o referido art.
[5]Cf. NASCIMENTO, Roberta Simões. Desoneração: o que se espera do artigo 113 do ADCT?. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-abr-30/desoneracao-o-que-se-espera-do-artigo-113-do -adct/ [08/05/2024].
[6] Sobre o tema, vide: TORRES, Heleno. Direito Constitucional Financeiro. São Paulo: RT, 2014, p. 71 e ss.
[7] Cf. ABRAHAM, Marcus. Curso de direito financeiro brasileiro.5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 347.
[8] Cf. ABRAHAM, Marcus. Op. cit., p. 344.