Com governo forjado na paranoia, Bolsonaro tinha no golpe único desfecho possível

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Após a divulgação da reunião ministerial ocorrida no dia 5 de julho de 2022, no contexto das investigações da Polícia Federal sobre o golpe de Estado pretendido por Jair Bolsonaro (PL) e militares para se manterem no poder mesmo com a derrota nas eleições daquele ano, emerge com nitidez um elemento crucial para compreender a dinâmica de poder entre o ex-presidente e seu gabinete: a paranoia.

Trata-se do ingrediente principal na cerca de uma hora e meia da reunião em que Bolsonaro descreveu de modo estratégico o perigo que se avizinhava, segundo o então chefe de Estado e governo, três meses antes do pleito de outubro. “Tão preparando tudo pro Lula ganhar no 1º turno, na fraude”, cravou o presidente da República, sem provas.

Em artigo publicado por ocasião da famosa reunião ministerial do dia 22 de abril de 2020, no começo da pandemia, chamei atenção para a atmosfera paranoica que predominava naquele concerto golpista ocorrido em meio à emergência da pandemia. Na época, destaquei o tom de paranoia e intimidação presente no discurso inicial de Bolsonaro – e como esses afetos condicionariam todo o seu gabinete a agir de modo a esticar a corda dos delírios de Jair Messias.

Tudo se passava, afinal de contas, como se ali não estivesse ocorrendo uma reunião de governo, mas um palanque, com uso de linguagem bem semelhante à utilizada em seus comícios, em que Bolsonaro – um líder inseguro e paranoico –convocava os ministros-súditos a disputarem, entre si, o posto de fiel escudeiro do capitão. Nessa dinâmica, ganharia a confiança de Jair aquele que reforçasse, com maior vigor, as suas palavras, ampliando, assim, o ciclo de intimidação ao emparedar os demais colegas.

Volto a esse episódio para destacar como, três anos depois, o que podemos observar na reunião ministerial às vésperas da eleição de 2022 é um tom bastante semelhante. “Nós estamos vendo o que está acontecendo, vamos esperar o quê? Todo mundo vai se f*”, diz Bolsonaro, antes de ter suas palavras fielmente repetidas pelo então ministro da Justiça Anderson Torres, forte candidato a ter conquistado em primeiro lugar o concurso de fidelidade à paranoia bolsonarista.

Numa fala introdutória de cerca de 40 minutos, Bolsonaro, de maneira bastante desconexa, mergulha em conspirações, desde a facada até a ex-presidente da Bolívia Jeanine Añez, passando ainda por Aécio Neves, além de sua própria eleição em 2018, a postura dos militares, a união da esquerda e, claro, a dobradinha formada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para supostamente fazer de Lula seu sucessor.

Vale destacar que é na forma – e não no conteúdo de seu enredo – que reside a mensagem bolsonarista: do início ao fim, o capitão, bastante inseguro e fora de si, apela à necessidade de união da extrema direita (e quiçá do antipetismo em geral) em torno de seu plano golpista: “Pessoal tá louco pra dizer pra mim agora, ‘tá vendo que não teve fraude’”, diz ele, num teste de fidelidade aos ministros.

Como lembra o cientista político Ivan Krastev, na dinâmica de poder estabelecida pela extrema-direita ao redor do mundo, a mentira não é um recurso de manipulação, mas de intimidação. Ao lembrar os ministros de que sua hipótese de fraude não se sustenta, Bolsonaro quer testar seus reais fiéis – os que estão com ele por cultuarem sua figura pessoal, e não por acreditarem no seu projeto.

Essa é, também, uma forma evidente de Bolsonaro – que, no fim dos anos 1980, havia sido na prática expulso do Exército por motivos de indisciplina – se vingar dos generais presentes na sala. Isso porque o então presidente exaltou como virtude os valores que as próprias Forças Armadas alegam ser objeto de repulsa, estabelecendo, assim, uma relação tipicamente perversa com a Lei.

Logo após censurar o gesto de insegurança de um ministro (“Um general que parece estar chorando na minha frente, p* que o pariu!”), Bolsonaro faz questão de exaltar a sua própria fraqueza (“Quem virou candidato a presidente? Eu, uma p* de um deputado!”). É como se estivesse dizendo que, três décadas após seu desligamento da ativa, o jogo tinha virado a partir de 2018. É o capitão indisciplinado que manda no general, não apesar de sua incapacidade, mas precisamente em razão dela.

Essa relação constitutivamente perversa com a Lei se revela, com frequência, no comportamento de Bolsonaro: assim como, para ele, a ode às Forças Armadas se dá no apelo à indisciplina, Bolsonaro só faz questão de ressaltar seu suposto respeito à norma no exato instante em que planeja violá-la.

“Ninguém quer botar tropa na rua, fechar isso ou fechar aquilo. Nós estamos vendo o que está acontecendo, vamos esperar o quê?”, disse ele durante a reunião, convocando na prática a tropa segundos após negar que queira fazê-lo – isto é, o apelo da ordem, para a extrema-direita, reside no prazer de violá-la; nessa visão, somente o bolsonarismo, em seu caráter de poder soberano, teria o direito de fazê-lo de forma legítima.

Daí porque – vale lembrar – é inútil discutir, no que diz respeito ao bolsonarismo, se prevalece a dissimulação ou o fanatismo. Ambos caminham juntos como uma máquina que gira em função da paranoia de Jair, sendo ele, ao mesmo tempo, causa e consequência da radicalização de seu governo.

Por isso, longe de ter sido uma simples escolha política, a tentativa de golpe mostra-se o único desfecho possível de um governo forjado na paranoia extrema. Aos que seguissem outro rumo, Bolsonaro tinha um recado: “Não quer papo? Então está no lugar errado”.

Para sorte do Brasil, quem estava no lugar errado era o presidente golpista e seus aliados que terminaram seus dias no poder engolidos pela própria paranoia. O golpe deu com os burros n’água porque, além da falta de apoio externo e entre parte significativa do PIB, se fundamentava numa narrativa descolada da realidade.

Rafael Burgos é jornalista, mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. É organizador do livro “Escombro: um diário da máquina do ódio” (Kotter, 2024, no prelo)