O ditador venezuelano Nicolas Maduro já tem legitimidade para uma eventual ação militar contra a Guiana para tomar nada mais do que 70% do território do país vizinho — a região denominada Guiana Essequiba, repleta em recursos naturais, inclusive petróleo, riqueza da qual a Venezuela já é uma das maiores detentoras do mundo. Conforme esperado, o governo Maduro saiu vitorioso com 96% dos votos num referendo realizado no último domingo (3), em que eleitores venezuelanos responderam a cinco perguntas referentes à anexação do território do país vizinho. Nenhuma das questões autoriza explicitamente uma intervenção, mas direcionam a ditadura venezuelana à anexação forçada da área.
Para os governos petistas que sempre fizeram vista grossa às escaladas ditatoriais de Caracas iniciadas sob o mandato do antecessor de Maduro e seu padrinho político, Hugo Chávez (1999-2013), fica a dolorosa lição de que pretensos anti-imperialistas autoritários podem se converter em imperialistas sub-regionais, trazendo instabilidade para a América do Sul.
O próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em seu atual mandato, deu declarações que chancelam a democracia venezuelana. É inquestionável que o Brasil se guia pelo princípio da não intervenção em suas relações exteriores. Todavia, não foram poucas as ocasiões em que Chávez e Maduro foram imprudentemente apoiados pelo Palácio do Planalto.
Não se trata de uma questão de esquerda ou de direita. Em contraponto à democracia liberal e suas variantes com enfoque em questões sociais, modalidades autoritárias de poder tendem à imprevisibilidade. Sem entrar no mérito da legitimidade das reivindicações territoriais da Venezuela ou de qualquer outra nação, o foco desta análise aqui é a noção de estabilidade regional. Nos últimos 50 anos houve na América do Sul episódios significativos que comprometeram o status quo na região por conta de autocracias que, tal como o regime de Maduro hoje, buscavam legitimidade popular por meio do patriotismo impulsionado por pretensões de expansão territorial.
O exemplo mais clássico é a Guerra das Malvinas, empreendida em 1982 pela ditadura de direita e bastante liberalizante da Argentina. Foi uma clara tentativa de adiar o inevitável fim do regime. A reivindicação de Buenos Aires sobre o arquipélago que os britânicos chamam de Falklands é sem dúvida legítima — trata-se de território ocupado e povoado no contexto da expansão imperialista de Londres no século 19, no contexto da Revolução Industrial.
Porém, da maneira como foi empreendida há 41 anos, a estratégia argentina serviu apenas aos propósitos de sufocar temporariamente as pressões por democracia em troca de uma catarse patriótica momentânea e altamente custosa em vidas, com 649 militares argentinos mortos.
Em 1995, segundo as melhores evidências históricas, o ditador peruano Alberto Fujimori deu ordens para movimentações militares em torno da disputa existente até então com o Equador pela soberania do Alto Cenepa, região de menos de 80 km² localizada em plena cordilheira. O resultado foi um conflito com poucas porém desnecessárias baixas para ambos os lados já que a fronteira foi logo depois negociada com a mediação de Argentina, Brasil, Chile e Estados Unidos.
Uma evidência de que guerras patrióticas não são uma estratégia apenas de autoritários no estágio avançado de corrupção das instituições, como aquele em que se encontra atualmente a Venezuela, lembremo-nos de que o primeiro populista de direita a chegar à Presidência do Brasil, Jânio Quadros, chegou a fazer planos efetivos para invadir a Guiana Francesa durante seu breve mandato de apenas sete meses entre janeiro e agosto de 1961. Considerada parte integral da França, a Guiana Francesa compreende território que antes da Independência do Brasil chegou a pertencer à coroa portuguesa durante as guerras napoleônicas. A chamada Operação Cabralzinho, porém, foi abortada com a renúncia de Quadros, a qual tinha sido parte de uma tentativa malfadada de autogolpe.
Ironicamente, tal como ocorre com as Malvinas, a questão da Guiana Essequiba também é um vestígio do colonialismo britânico. Com o território pretendido por Maduro ainda sob domínio do Reino Unido, em 1899 ficou acordado mediante arbitragem internacional que a Venezuela deveria se conformar aos limites atualmente estabelecidos a leste de seu território. Porém, em 1966, pouco antes da independência da Guiana, os britânicos estabeleceram um acordo com os venezuelanos indicando que a questão deveria ser discutida novamente entre ambos os lados. Do ponto de vista do Direito Internacional, é fato que a Corte Internacional de Justiça (CIJ) se pronunciou favorável ao status quo — ou seja, manter o território reivindicado pela Venezuela sob a soberania da Guiana.
Ao Brasil, cabe arvorar-se no Direito Internacional e fazer gestões de bastidor para ajudar a Guiana a manter seu território em integralidade, além de reforçar ainda mais a fronteira norte, até porque áreas do estado de Roraima seriam essenciais para que Maduro concretize uma eventual ação militar. No entanto, numa era onde a geopolítica voltou a triunfar sobre a cooperação internacional, a lição não poderia ser mais clara. Em bom espanhol, cría cuervos, y te sacarán los ojos.