O governo Lula 3 está descambando para o populismo fiscal? O debate emergiu após o presidente sugerir que a meta de déficit zero nas contas públicas, prevista para 2024, não será cumprida. Analistas entendem a fala como forma de desautorizar o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, ou ainda uma estratégia para pressionar o Congresso Nacional a se movimentar para que o Tesouro Nacional atinja o objetivo definido no chamado arcabouço fiscal, aprovado no primeiro semestre e bem recebido pelo mercado.
O arcabouço pode ser definido como um esforço em conciliar a necessidade de manter os gastos públicos no atual patamar para satisfazer obrigações constitucionais e programas sociais enquanto sinaliza para o mercado a disposição do governo em impedir que a relação dívida/PIB, que está por volta de 75%, fique mais elevada. Para além dos movimentos especulativos já esperados após a fala do presidente, há por parte dos atores de mercado o temor de que Lula reedite as políticas adotadas a partir do seu segundo mandato (2007-2011), em particular após a crise de 2008.
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Tal temor, no entanto, não faz o menor sentido considerando que o “mercado”—esse ser amorfo que esconde desde especuladores até pequenos investidores preocupados em formar reservas para a aposentadoria—aceitou de bom grado o episódio de populismo fiscal mais recente. Não estamos falando do descalabro macroeconômico que foi a gestão Dilma Rousseff (2011-2016). Nos bastidores do petismo, falava-se abertamente à época que a perspectiva equivocada de que graças ao pré-sal o Brasil se tornaria um petrostate—nos maiores delírios, uma Arábia Saudita latino-americana—e, portanto, poderia antecipar a gastança que seria proporcionada pelos dividendos oriundos da exploração da commodity.
O episódio mais recente de populismo fiscal tem nome e sobrenome: chama-se tentativa de reeleição fracassada de Jair Messias Bolsonaro (PL), que não queria um segundo mandato para implantar a natimorta agenda liberal de Paulo Guedes, seu ministro da Economia, mas para proteger a si e seus asseclas da clava forte da Justiça. Ainda assim, embora Guedes tenha mandado às favas qualquer preocupação com o orçamento federal para obedecer aos desmandos do então presidente Bolsonaro que queria conquistar a reeleição a qualquer custo, o mercado parecia estar mais preocupado com a vitória de Lula do que com a continuidade de um governo com claras intenções golpistas e, portanto, hostil à estabilidade político-econômica.
Ao mesmo tempo que tem que lidar com a situação fiscal e a administrativa caótica—basta lembrar do choque manifestado pelo vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB) acerca dos dados da administração Bolsonaro durante o governo de transição—, Lula tem claros compromissos sociais além do que é determinado pela Constituição.
Por exemplo, a abertura de novos concursos públicos reflete a necessidade de reorganizar a máquina após o desmantelamento parcial do Estado promovido por Bolsonaro. Obviamente organizar a máquina não implica em contratações apenas, tampouco em altos salários para o funcionalismo federal. No entanto, a situação de algumas burocracias essenciais ao funcionamento de áreas como saúde, pesquisa e desenvolvimento, e questões ambientais aparentava ser tão caótica ao fim do governo Bolsonaro que um governo minimamente comprometido e recolocar o país nos trilhos faria o mesmo que Lula vem realizando em seu terceiro mandato.
A preocupação com a relação dívida/PIB é bastante legitima e está no cerne da estabilidade macro económica. Porém, deve-se insistir numa lógica de austeridade que implica no desmonte de serviços públicos e, portanto, leva o país acumular pressões sociais sem que o menor gasto público reverbere em mais ação da iniciativa privada em prol do país?
Façamos o seguinte exercício lógico: se a redução do gasto público liberar mais dinheiro para que o setor privado invista de modo mais eficiente, nós teríamos uma situação de desenvolvimento econômico melhor que a atual? Não me parece ser necessariamente o caso até porque, quando tivermos um Estado mais fraco, mas estávamos amplamente inseridos em mercados internacionais—como foi o caso no período da República Velha—não necessariamente a economia brasileira entrou numa espiral de dinamismo. Nosso período de maior crescimento se deu entre 1930 e 1980, quando houve o consenso keynesiano das hoje chamadas democracias liberais do Norte Global, em particular no pós-Segunda Guerra Mundial. É um modelo que se exauriu nos anos 1970, mas a versão tropical dele—aqui no Brasil e em outros países de industrialização tardia—apenas encontrou seus limites definitivos nos anos 1980, em meio ao predomínio das ideias neoliberais no campo da economia.
Mais do que estar preocupado com a relação dívida/PIB, aqueles genuinamente interessados no desenvolvimento do país e na sustentabilidade do crescimento econômico devem se perguntar se o gasto público tem qualidade no sentido de não representar meras despesas de custeio da máquina, mas investimentos que podem reverberar num contexto de maior crescimento econômico no futuro. Tal cenário tende a se confirmar com o crescimento do agro via exportações enquanto houver alta no preço das commodities, havendo, portanto, boas perspectivas para uma maior arrecadação e queda na relação dívida/PIB tal como ocorreu no primeiro ciclo de Lula no poder.
Não é de hoje que o mercado tem falhas de percepção graves—a maior delas foi a preferência por Bolsonaro em relação a Lula depois de quatro anos limitadíssimos desde o ponto de vista da estabilidade institucional. Ademais, também cabe nos perguntarmos se tal como keynesianismo foi derrotado nos anos 70, não chegou a vez do neoliberalismo sair de cena dando lugar a políticas industriais e um maior intervencionismo estatal que, em vez de reeditar o Estado empreendedor, abre alas para uma ação governamental que articula o setor privado em função de objetivos estratégicos, sem dar as costas para as necessidades do povo, projetadas na economia real.
E foi falta de preocupação com a economia real que levou Bolsonaro a perder de Lula por margem mínima. Para os que insistem em desconfiar do PT no campo macroeconômico, cabe ainda lembrar que foi sobre os governos de Lula em que formamos volumosas reservas internacionais. Mais do que a economia, preocupa ainda a política cercada por desconfianças mútuas entre atores que deveriam convergir para a preservação da democracia, independentemente de diferenças programáticas.
Todo governo merece e deve ser criticado, mas me parece um exagero que, numa conjuntura atual de declínio das ideias liberais, queira-se pressionar autoridades a seguir fórmulas já postas em xeque. O tempo passou na janela e apenas os ditos neoliberais não viram.