A incerta natureza jurídica da CCEE e suas implicações para os agentes regulados

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Já se tornou lugar-comum a afirmativa de que o setor elétrico é vetor do desenvolvimento econômico e da captação de investimentos estrangeiros no Brasil. Não poderia ser outro o cenário em um país que, em razão da predominância histórica das fontes renováveis na sua matriz elétrica, possui vocação para liderar a tão desejada (e custosa) transição energética.

Mas é engano acreditar que o seu protagonismo econômico se dá apenas pelas vantagens naturais brasileiras, já que todo setor regulado precisa de segurança jurídica para ser atrativo às investidas dos agentes privados – uma máxima que não escapa ao setor elétrico.

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O atual arranjo do setor elétrico é fruto de alterações promovidas há cerca de 20 anos, no  que ficou conhecido como “Novíssimo Modelo do Setor Elétrico”. Embora o Novíssimo Modelo do Setor Elétrico ainda precise passar por constantes aprimoramentos e atualizações[1], fato é que ele conferiu previsibilidade e estabilidade aos seus agentes setoriais, tendo se provado resiliente até mesmo em cenários desafiadores, como a seca que esvaziou os reservatórios em 2020-21, e a constante inclusão de novas tecnologias no sistema, como a geração distribuída.

Dentre as alterações trazidas pelo Novíssimo Modelo do Setor Elétrico, houve verdadeira revolução na comercialização de energia. Em específico, foi instituída uma entidade responsável por viabilizar a operação dos ambientes de contratação livre e regulada: a tão falada Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), em substituição ao Mercado Atacadista de Energia (MAE), criado pelo art. 12 da Lei 9.648/1998. Esse artigo se dedica a tecer alguns comentários a respeito da Câmara, em específico sobre a sua controvertida natureza jurídica e as implicações práticas da escolha por uma ou outra classificação.

A CCEE é uma figura atípica dentro do direito brasileiro. Embora a sua lei de criação fale em “pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, sob autorização do Poder Concedente e regulação e fiscalização pela ANEEL” (art. 4º da Lei 10.848/2004), há uma série de fatos que indicam não se tratar de associação privada igual àquelas regidas pelo Código Civil.

Como já foi dito em um comentário destinado ao Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), que associação é essa que precisa de autorização e cujos membros ingressam por força de obrigações compulsórias?[2] São duas características que vão de encontro ao princípio da liberdade associativa (art. 5º, XVII, da Constituição Federal). Ainda existem outros aspectos materiais que demonstram essas diferenças entre a CCEE e as associações privadas, na medida em que a CCEE é encarregada da gestão de contas setoriais e da liquidação financeira do Mercado de Curto Prazo (MCP), que são pelo menos duas atividades de nítido interesse público.

Tendo isso em vista, o Supremo Tribunal Federal (STF) já manifestou o entendimento de que a CCEE pode ser classificada como uma entidade de direito privado atípica, posto que ela é responsável por funções de eminente interesse público[3]. Também foi nessa linha o comentário da literatura especializada à época do Novíssimo Modelo[4]. Contudo, a natureza jurídica da CCEE é longe de ser um tema pacífico.

Recentemente, a 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) deu provimento ao Recurso Especial 1.950.332/RJ, sob o pretexto de que CCEE não dispõe de poder de polícia, uma vez que: (i) não integra a administração pública, (ii) não possui previsão constitucional para atuar como agente delegada da função administrativa de infligir sanções, (iii) seus integrantes não gozam de quaisquer estabilidades empregatícias, e (iv) é composta por agentes que desempenham atividades com fins lucrativos. Ademais, o STJ apontou que: “Não há lei formal autorizando direta e expressamente que a CCEE aplique diretamente multas aos particulares, e depois as cobre por conta própria”.

O Recurso Especial foi interposto diante de acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) que, na origem, concedeu uma decisão favorável à “ação de cobrança decorrente de garantias, penalidades por insuficiências de lastro e contribuições associativas inadimplidas, advindas de contrato não cumprido no setor de energia elétrica”, movida diretamente pela CCEE. Sem prejuízo do teor fático do Recurso Especial em destaque, ele reabre um interessante debate em torno da CCEE, baseado na discussão já calejada do nosso direito administrativo sobre o poder de polícia.

Em resumo, o poder de polícia pode ser entendido como toda atividade da administração pública que, com fundamento no interesse público, condiciona a liberdade e/ou a propriedade dos indivíduos. Indo além, a doutrina dita que a função de polícia administrativa possui quatro fases[5]: (i) ordens de polícia, (ii) consentimento de polícia, (iii) fiscalização de polícia, e (iv) sanção de polícia. O cerne da questão está justamente na última fase – a sanção de polícia –, a qual conferiria ao agente do Estado a prerrogativa em punir aqueles que violam as demais fases.

Possuiria a CCEE, então, a função de sanção de polícia? Segundo o entendimento do STF exarado no Recurso Extraordinário nº 633.782/MG, o poder sancionatório não pode ser delegado a particulares, exceto quando se tratar de integrantes da administração pública indireta de capital social majoritariamente público e que prestem serviço público de atuação própria do Estado e em regime não concorrencial. Em bom português, o poder de polícia pode ser delegado a particulares apenas se estes correspondessem cumulativamente aos critérios mencionados acima. Novamente, voltamos para o ponto que introduziu a discussão proposta: e qual é a natureza jurídica da CCEE?

Na letra fria da Lei Federal 10.848/2004, uma associação privada. No entendimento do STF, uma entidade de direito privado atípica. Na operacionalização do seu mercado, uma entidade que exerce atividades de interesse público. Há, portanto, ao menos três caminhos com implicações distintas entre si.

O debate ainda está longe de resolvido e o fundamento jurídico para o exercício da função sancionatória pela CCEE está presente tanto no Decreto 5.177/2004, quanto na Convenção de Comercialização de Energia Elétrica, prevista na Resolução Normativa da ANEEL 957/2021, sem qualquer tipo de Lei a respeito do assunto.

Apesar de não ter ocorrido o trânsito em julgado, o acórdão do STJ em comento abre alas para uma série de cenários possíveis, que vão desde a judicialização em massa até a reformulação da regulação para determinar qual seria o ente responsável pela função sancionatória do setor de comercialização. Qualquer judicialização em massa envolvendo o setor elétrico traz de volta uma série de memórias sobre o seu passado recente, especialmente nos casos do Generation Scaling Factor (GSF) e da Conta de Desenvolvimento Energético (CDE).

Qualquer um desses possíveis cenários vislumbrados têm como raiz a mesma dúvida, vale dizer, a incerta natureza jurídica da CCEE. A linha é tênue entre a garantia da segurança jurídica do setor elétrico, que só tende a ocupar um espaço cada vez mais relevante para o país, e a violação a preceitos constitucionais que incidiriam em atos ilegais contra agentes do próprio setor.

Parafraseando Gustavo Kaercher Loureiro, “sob o ponto de vista da atividade, a CCEE realizaria o “serviço dos serviços” da comercialização de energia elétrica, sob o ponto de vista de sua estrutura, a CCEE lembra uma entidade pública. E com regulação para tudo.[6] Que tipo de poderes ela têm?”

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[1] O setor elétrico acompanha há alguns anos o deslinde de uma série de Projetos de Lei que se propõe a mudar as premissas do Novíssimo Modelo. Com maior ênfase, o PL 414 foi visto por muitos como o maior postulante a trazer mais um “novo modelo” para o setor. Contudo, informações recentes apontam para a possibilidade que outro projeto seja proposto pelo Governo de plantão.

[2] LOUREIRO, Gustavo Kaercher. Precisamos falar sobre o Operador Nacional do Sistema Elétrico. Consultor Jurídico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-dez-22/gustavo-loureiro-precisamos-falar-ons. Acesso em: 11/10/2023.

[3]STF. ADI nº 3.090-MC/DF. Min. Relator: Gilmar Mendes. Órgão Julgador: Plenário. Data do Julgamento: 11/10/2006. DJe: 26/10/2007.

[4] TOLMASQUIM, Mauricio. Novo Modelo do Setor Elétrico Brasileiro. Rio de Janeiro e Brasília: EPE e Editora Synergia, 2011. 2ª edição.

[5] NETO, Diogo de Figueiredo Moreira. Curso de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2014. 16ª edição.

[6] Cumpre destacar que os Procedimentos de Comercialização, as Regras de Comercialização e a Convenção de Comercialização da CCEE são aprovadas via Resolução Normativa pela ANEEL.