Caso Mariana em Londres é de litigância transnacional e promove igualdade

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Desde o ano passado o caso do rompimento da barragem de Fundão, que aconteceu em 2015 em Mariana, está sendo julgado por uma corte inglesa. Este processo tem suscitado debates no Brasil acerca da litigância transnacional, com questionamentos sobre sua legitimidade e comparações com o que é chamado de litigância predatória.

Há situações, como neste caso, em que um processo judicial possui conexões em diferentes Estados – seja pela localização do réu não ser a mesma do local onde os fatos aconteceram, por haver desdobramentos em mais de um país ou porque o réu possui ativos em um país diferente. Há, portanto, razões que possibilitam a jurisdição de um fato ocorrido no Brasil ser exercida por um país estrangeiro. A isto dá-se o nome de litigância transnacional.

No caso de Mariana, a corte inglesa foi acionada porque a BHP Billiton, uma das acionistas da Samarco, empresa responsável pela barragem, tinha sede no país europeu. Ao ser provocada pelo escritório Pogust Goodhead, que representa as vítimas da tragédia, a justiça inglesa confirmou ter competência para julgar o caso.

Ainda que a corte tenha dado seu aval para o seguimento do processo – que teve a  fase de arguição encerrada e apenas aguarda sentença –, questionamentos de diversas ordens são levantados contra esta ação. As críticas vão desde falta de competência da justiça inglesa, até litigância predatória.

Carlos Portugal Gouvêa, professor de Direito Comercial na Universidade de São Paulo (USP) e sócio-fundador do escritório PGLAW esclarece que tais argumentos são infundados, uma vez que na economia globalizada, “é natural que existam casos que envolvam múltiplas jurisdições”. “Uma companhia que opera em múltiplas jurisdições já sabe que está sujeita ao sistema jurídico de múltiplos países”, explica.

Ana Carolina Salomão, advogada especialista em financiamento de litígios e ativos judiciais e sócia fundadora da consultoria Montgomery, esclarece que tais argumentos são infundados. Ela aponta que a lei brasileira é clara em determinar que uma corte estrangeira e a justiça brasileira podem julgar um mesmo caso ao mesmo tempo, pois não existe litispendência internacional.

Além dessa possibilidade, a especialista destaca que no caso de Mariana os dois processos são diferentes. Tanto porque na ação inglesa há muito mais pessoas envolvidas (mais de 620 mil, frente a cerca de 230 mil elegíveis aos programas de reparação no Brasil), quanto porque no Brasil não existe um instrumento para reparação de danos coletivos por grupos privados, como acontece na Inglaterra.

“Não é possível que um grupo de pessoas lesadas por um dano ambiental, por um dano privado, se juntem para litigar contra a parte que causou o dano”, explica Ana Carolina Salomão. “O instrumento coletivo é uma Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público ou talvez por alguma associação. Mas a verdade é que não existe um mecanismo como na Inglaterra, em que um coletivo de vítimas se organiza, contrata um escritório de advocacia e o grupo inteiro pode ajuizar uma ação para cobrar os danos individuais e coletivos sofridos”, completa.

Litigância predatória

Outra das acusações enfrentadas pelas vítimas do desastre sócio-ambiental que buscam reparação em Londres é a de litigância predatória. Este conceito consiste no uso abusivo do sistema de justiça.

De forma geral, isto se dá quando uma das partes aciona o judiciário mesmo sem ter um direito violado ou com sobrecarga excessiva e desnecessária do sistema de justiça. Isso pode ocorrer com o objetivo de obter benefício próprio, para prejudicar a outra parte ou para um outro fim que não é o que está sendo pleiteado na ação, como protelar ou atrapalhar outro processo que esteja tramitando em paralelo, por exemplo.

Sinais da litigância predatória incluem procurações genéricas, petições iniciais sem documentos que comprovem as alegações, muitas ações postuladas por um mesmo advogado em um curto espaço de tempo, entre outros.

Esta prática se difere, portanto, da litigância transnacional e também da litigância de massa. A última acontece em defesa de direitos coletivos ou individuais homogêneos, mas sem uso de técnicas processuais fraudulentas ou mal-intencionadas.

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Especialistas apontam que enquadrar um processo como o do caso de Mariana como litigância predatória pode trazer consequências negativas não apenas para as vítimas, mas também para a sociedade brasileira como um todo. “As externalidades desse tipo de conduta afetam a relação de outros entes que não são aqueles que estão dentro da ação judicial”, alerta Ana Carolina Salomão.

“Se você considerar que qualquer litígio que seja coletivo, financiado por terceiro, e encabeçado por uma parte que organiza o litígio é predatório, você está privilegiando a impunidade. Isso é um problema não só para o grupo afetado, mas para todo cidadão brasileiro. Isso é um problema social”, argumenta a advogada.

Os desafios do acesso à justiça

É possível que tenha havido confusão de alguns ao encaixar o caso de Mariana em Londres no âmbito da litigância predatória, por se tratar de uma litigância de massa. Mas na visão de Ana Carolina Salomão, o caso de Mariana está recebendo a pecha porque “ele quebra a lógica de que aos afetados pela violação do direito nunca haverá justiça”.

“Esse argumento da litigância predatória tem um caráter nefasto, porque ele inverte a lógica de quem é a parte a ser protegida pelo ordenamento jurídico”, diz a especialista. “Acho que existe uma confusão quando se fala em litigância predatória de quem realmente é a presa”, complementa.

O acesso ao sistema de justiça é na prática limitado por diversas barreiras. A falta de informação sobre os próprios direitos é a primeira causa que afasta inúmeras pessoas da busca por justiça.

A isso, somam-se as dificuldades de caráter institucional – os procedimentos específicos necessários para pleitear direitos –, e econômico-financeiros. “É impossível imaginar que indivíduos tenham capacidade de enfrentar barreiras informacionais, institucionais e econômico-financeiras para lutar contra grandes corporações que lesaram seus direitos”, diz a fundadora da Montgomery.

Neste cenário, ela defende que o financiamento de litígios por terceiros, como aconteceu no caso de Mariana em Londres, “equipara” a luta e “quebra algumas das barreiras ao acesso à justiça”. “Tendo uma parte que organiza, estrategiza e financia este litígio, os indivíduos têm maior capacidade de ultrapassar esses bloqueios e atingir a capacidade de demandar ao juízo que profira uma decisão com relação à violação ou não do direito, ao dever ou não de indenizar”, concluiu.

O financiamento de litígios de massa para a responsabilização por graves violações ambientais, como no caso de Mariana, visa simplesmente equilibrar a relação desproporcional de poder, informações e capacidade econômica entre vítimas vulneráveis e grandes corporações transnacionais. Trata-se de um mecanismo de equidade e emancipação e, por isso, provoca muitos incômodos. 

Class actions e a importância da litigância transnacional

Em meio às críticas, o julgamento do caso de Mariana na Inglaterra possibilita uma reflexão a respeito da importância da litigância transnacional. Segundo Carlos Portugal Gouvêa, a relevância deste tipo de ação “é evitar que determinadas companhias escolham fazer negócios em determinadas jurisdições apenas aproveitando-se de fragilidades nos sistemas jurídicos locais”.

Nesse contexto, ele destaca as class actions, ou ações de classe, que existem em quase todos os países ricos do mundo, mas não nos países da África ou da América Latina. Por meio delas, evita-se que a busca de justiça por danos causados por empresas seja alcançável apenas aos mais ricos, que podem pagar bons advogados.

“Na ação de classe, como uma pessoa entra com a ação representando toda a classe, ninguém fica sem indenização. Logo, fazer operações que oferecem mais riscos para trabalhadores ou consumidores em países que não tem ações de classe é mais barato do que em países que têm ação de classe”, explica o professor.

Ele aponta que o sistema judiciário também faz parte dos pilares que impedem o desenvolvimento de países: “O subdesenvolvimento não se caracteriza apenas por baixa renda per capita, mas também pelas características do sistema jurídico que mantém o subdesenvolvimento. Não obrigar as companhias a indenizar as pessoas mais pobres é uma forma de manter a desigualdade social.”

Nesse cenário, reforça-se a importância da litigância internacional, para evitar o comportamento oportunista de determinadas empresas. Isso, aponta Portugal, é reconhecido pelo sistema jurídico de países ricos, afinal “ter companhias causando danos a pessoas de outros países mundo afora não é algo bom para a imagem desses países.”