Lei 14.754/23 e tributação de rendimentos de fundos fechados: vício ou virtude?

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Em 12 de novembro de 2023, foi publicada a Lei 14.754, a qual, dispôs sobre a tributação dos rendimentos de aplicação em fundos de investimento no país.

Dentre as alterações, de se destacar a submissão dos fundos de investimento fechados[1], a partir de sua publicação, à retenção do IR no último dia útil dos meses de maio e novembro (art. 16, I) ou na data da distribuição de rendimentos, da amortização ou do resgate de costas, caso ocorra antes (art. 16, II), por meio da sistemática conhecida no mercado de capitais como “come-cotas”, tal como já aplicada para os fundos abertos.

Ponto de grande impacto nas alterações reside no art. 27, que estabelece a tributação dos rendimentos apurados pelos fundos de investimento fechados, que não estavam sujeitos à tributação periódica pela sistemática do “come-cotas”, determinando a sua apropriação “pro rata tempore” até 31 de dezembro de 2023 e sujeitando-os à incidência do IRRF à alíquota de 15%.

Ou seja, o estoque de rendimentos, apurado até 31/12/2023, deverá se sujeitar à cobrança do IR e corresponderá à diferença positiva entre o valor patrimonial da cota naquela data, incluídos os rendimentos apropriados ao cotista, e o custo de aquisição das cotas do fundo fechado.

Conquanto se tenha verificado ampla adesão dos participantes dos fundos de investimento fechados à nova sistemática e à tributação do estoque de seus rendimentos[2], é certo que a regra em comento também tem sido objeto de questionamentos por parte de um reduzido grupo de contribuintes.

Os questionamentos se pautam no princípio da irretroatividade tributária (art. 150, III, “a”, CF), pela instituição de tributo sobre rendimentos auferidos antes de sua vigência, e que somente seriam tributados em momento futuro. Menciona-se também a decisão do STF na ADI 2.588/DF, que tratava da tributação dos lucros auferidos por coligadas e controladas de empresas brasileiras no exterior.

Se tais considerações jogam luz sobre a eventual conformidade da nova legislação ao aludido princípio, é verdade que elas também trazem em si o convite à importante reflexão sobre o papel da nova legislação na correção de uma antiga e injustificada distorção na tributação dos fundos de investimento. Assim, o que se pretende responder por meio desta sucinta opinião é simples: haveria vício ou, ao contrário, virtude na tributação do estoque de rendimentos dos fundos fechados?

Sobre o argumento de suposta ofensa à irretroatividade tributária, que veda a cobrança de tributo “em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado”, o que se extrai do dispositivo é que a proibição trazida busca alcançar somente a instituição ou majoração de tributo, o que não ocorre na nova sistemática de tributação, tendo em vista que não houve a criação de espécie tributária nova, muito menos a majoração de espécie já existente.

Além disso, a vedação se refere à tributação de fatos geradores ocorridos e consumados no passado, sem qualquer ressalva à produção de efeitos da lei sobre situações ainda não consumadas, tal como os rendimentos dos fundos de investimento. Cabe novamente destacar que, até a edição da citada lei, a tributação do investidor era feita quando da amortização ou resgate das cotas mantidas no fundo. Ou seja, a legislação previa que a tributação ocorria em momento futuro, e a nova sistemática não buscou alcançar fatos geradores pretéritos, mas tão somente antecipar a tributação dos ganhos por meio da sistemática do “come-cotas”, alterando-se o critério temporal do tributo.

Logo, a tributação dos estoques de rendimentos dos fundos de investimento fechados já existentes ao tempo da entrada em vigor da lei, pela sistemática do “come-cotas”, se apresenta como perfeitamente viável do ponto de vista jurídico-tributário, uma vez que tem por base fatos geradores pendentes, isto é, relativos a situações iniciadas no passado, mas até então não concluídas.

Portanto, não parece viável invocar a proteção do princípio constitucional, pois a legislação apenas alterou o momento em que o valor deverá ser oferecido à tributação, com antecipação do recolhimento de imposto que invariavelmente seria devido adiante, inclusive compensando-o com os montantes já recolhidos.

Prosseguindo na análise dos argumentos, o STF parece admitir o contrário do que se alega, tendo em vista que, ao proclamar a constitucionalidade parcial da norma impugnada na ADI 2.588/DF, efetivamente autorizou que a Lei determine o elemento temporal do tributo, ainda que este não coincida necessariamente com o momento de aquisição da disponibilidade econômica da renda.

Quanto à alegada violação à irretroatividade, o STF concluiu no caso em comento pela impossibilidade de reconhecimento da disponibilidade dos lucros apurados por coligadas ou controladas de empresas brasileiras no exterior, até o dia 31/12/2001, em favor destas, na data de 31/12/2002.

Entretanto, o STF apenas considerou indevido o mero encerramento do exercício como marco temporal para considerar distribuídos os lucros, e assim o decidiu em razão da necessidade de observância a diversos requisitos da legislação societária para a distribuição de lucros. Com efeito, assim consignou o ministro relator: “O encerramento do exercício brasileiro, no último dia de cada ano civil, nada tem de pertinente com o atendimento dos requisitos legais ou com a deliberação da empresa acerca da destinação a ser dada aos lucros”.

Dessa forma, o entendimento não se assemelha à tributação do estoque dos fundos fechados. De um lado, se discutia a distribuição de lucros por controladas e coligadas de empresas brasileiras no exterior, o que esbarra na própria impossibilidade da distribuição, ainda que lucro possa existir. De outro lado, nos rendimentos de fundos fechados, trata-se de nítido ganho de capital decorrente de valorização das cotas, expressamente reconhecida e quantificada em favor do cotista, sem quaisquer restrições de ordem volitiva ou legal.

Em adição às considerações acima, é importante ressaltar que a conformidade constitucional da tributação pelo art. 27, da Lei 14.754/23, já foi reconhecida em decisões de primeiro e segundo grau, no âmbito da Justiça Federal da 3ª Região (SP e MS).

Ademais, como se mencionou, necessária a reflexão sobre a pertinência da Lei 14.754/23 para, de modo compatível com o ordenamento jurídico-constitucional, corrigir antiga e inaceitável distorção na forma como os rendimentos dos cotistas de fundos fechados de investimento eram tributados e, por conseguinte, (não) ofereciam a sua parcela de contribuição à coletividade.

A nova legislação teve como objetivo alterar um sabido contexto de utilização dos fundos fechados como estrutura de investimento por contribuintes de elevada capacidade econômica, deixando seus rendimentos a salvo da tributação até o encerramento do fundo, muitos anos depois. Tal situação já não se verificava com os fundos abertos, sujeitos há anos à tributação periódica pelo “come-cotas”, e sem qualquer fator legítimo a justificar tal diferença de tratamento em favor dos reduzidos e exclusivos cotistas de fundos fechados.

Dessa forma, a nova sistemática foi instituída para corrigir a distorção que beneficiava pequeno número de cotistas dos fundos fechados, estrutura cuja utilização foi marcada nos últimos anos pelo forte planejamento tributário, para deles exigir de forma periódica o tributo sobre os rendimentos auferidos, inclusive com a apropriação dos acumulados até a data da entrada em vigor da Lei, em homenagem a outros caros princípios tributários, como os da capacidade contributiva, da isonomia e da justiça fiscal.

Em conclusão – e tomando emprestadas as certeiras palavras do Juízo da 8ª Vara Federal Cível de São Paulo em decisão paradigmática na qual se analisou a nova lei – enfim se pode cogitar da superação do incômodo paradigma que até então orientava a (não) tributação dos fundos de investimento fechados: “devo tributo, pago quando quiser e se quiser”.

[1] Os fundos de investimento fechados “são aqueles em que as cotas somente são resgatadas ao término do prazo de duração do fundo”, e os fundos abertos “são definidos como aqueles em que os cotistas podem solicitar o resgate de suas cotas a qualquer tempo”. Disponível em: <https://www.gov.br/investidor/pt-br/investir/tipos-de-investimentos/fundos-de-investimentos/fundos-abertos-x-fundos-fechados>. Acesso 19/06/2024.

[2] Com destaque para o fato de que, segundo representantes de gestoras, 100% dos clientes aderiram ao novo regime. Disponível em: https://valorinveste.globo.com/produtos/fundos/noticia/2024/01/24/come-cotas-de-fundos-exclusivos-fechados-rende-r-8-bi-a-receita-em-dezembro.ghtml>. Acesso 19/06/2024.