Com a iminência da sanção do novo marco legal para pesquisas clínicas no país, pesquisadores e investidores dedicados a buscar cura a milhões de pacientes que sofrem com doenças devastadoras tinham uma grande esperança. Imaginava-se que a nova lei traria segurança jurídica, agilidade e previsibilidade para a atração de novos investimentos para a realização de estudos clínicos no Brasil.
A lei foi sancionada no início do mês pela Presidência da República (Lei 14.874/24). Trouxe avanços significativos, é verdade, e a sua publicação deve ser exaltada. Contudo, um dos vetos da Presidência frustrou tanto pesquisadores quanto pacientes. Isso porque fará com que o país desperdice oportunidades preciosas para a realização de novas pesquisas clínicas, particularmente no caso de medicamentos para o tratamento de doenças raras e ultrarraras. Disclaimer: serão apresentadas visões polêmicas neste artigo.
Após quase uma década de debates intensos e profícuos na sociedade brasileira, o Poder Legislativo havia consolidado, ao início de maio, o texto do PL 6007/2023. Dentre as previsões mais relevantes estava o estabelecimento de regras claras sobre a dinâmica para destravar a aprovação de novas pesquisas para o desenvolvimento de terapias e medicamentos.
Esclareceu-se, por exemplo, as hipóteses em que o patrocinador do estudo tinha a obrigação de garantir o acesso gratuito da nova terapia para os participantes da pesquisa. E as circunstâncias excepcionais que permitiriam a sua interrupção. Dentre elas, a fixação do prazo de 5 anos, contado a partir da disponibilização comercial do medicamento inovador no país. A regra se mostrava razoável. Havia sido lapidada após anos de intensos debates, com a participação da sociedade civil e longa tramitação do projeto no Senado e na Câmara dos Deputados.
A razoabilidade dessa regra advém de uma compreensão holística do processo de pesquisa de uma nova terapia. Para tanto, é essencial entender todo este arco, o qual se inicia com as primeiras pesquisas laboratoriais, em etapa necessária para identificar potenciais compostos e moléculas.
Uma vez identificados compostos promissores, são conduzidos ensaios in vitro e testes em animais, seguindo diretrizes éticas em pesquisa, para se avaliar parâmetros de segurança e eficácia do composto pesquisado. Somente então se inicia a etapa clínica, composta por três fases iniciais.
A fase I, direcionada a um grupo reduzido de voluntários sadios, destina-se a averiguar principalmente questões de segurança. A fase II tem por objetivo constatar a eficácia da terapia, com a participação de pessoas com enfermidades. A fase III busca analisar o risco-benefício do tratamento, com a realização de amplos estudos com centenas ou milhares de pacientes, em estudos randômicos, multicentros e com a utilização de controle comparativo via placebo.
Vencidas todas estas etapas, em raras ocasiões, o medicamento se mostrará seguro e eficaz para utilização pelos pacientes. A fase IV, pós-comercialização, se inicia após a aprovação da terapia pela agência reguladora, com o fito de monitorar efeitos e reações adversas não esperadas.
Como se vê, a descoberta de uma nova terapia impõe um longo e tortuoso caminho a ser percorrido. Este processo é permeado por múltiplas incertezas e exige o desembolso de expressivos investimentos até que a invenção possa, eventualmente, se traduzir em um tratamento seguro, eficaz e de qualidade.
Não raro, bilhões de reais são desembolsados, muitas vezes a fundo perdido, ao longo de dezenas de anos. E não há qualquer garantia de que o tempo e os recursos dispendidos serão convertidos em um tratamento inovador em proveito dos pacientes. É uma aposta arriscada. Na maior parte das vezes, infrutífera e deficitária.
Este contexto faz sobressair a necessidade de um equilíbrio. De um lado, garantir o acesso da terapia aos pacientes que se predispuseram a participar da pesquisa. Sem eles, não haveria invenção. De outro, assegurar o incentivo econômico para que a pesquisa possa ser realizada no país. Especialmente, em um cenário em que o Brasil amarga uma posição de insignificância no ranking dos países que mais realizaram pesquisas clínicas.
Havia lógica, portanto, na previsão de que após 5 anos da disponibilização comercial do medicamento, pudesse ser cessado o fornecimento gratuito ao participante da pesquisa. De fato, se a terapia está acessível no mercado, o paciente não deveria ficar desassistido. Sobretudo em razão da previsão constitucional do direito à saúde (art. 196 da Constituição Federal), que impõe ao Estado o dever de garantir ao cidadão o acesso ao devido tratamento.
A despeito disso, a Presidência da República decidiu vetar a regra que estipulava esse prazo. Optou-se por impor aos pesquisadores e patrocinadores uma obrigação civil de natureza perpétua: a de fornecerem aos participantes do estudo clínico, gratuitamente e de moto vitalício, o medicamento pesquisado, mesmo que já se encontre acessível no mercado.
Trocando em miúdos, o veto ao inciso VI do art. 33 da lei transfere aos pesquisadores dever que, a rigor, incumbe ao Sistema Único de Saúde (SUS), por força do art. 196 da Constituição Federal. O veto ainda subverte a prescrição constitucional de que que o Sistema Único de Saúde deve ser financiado com recursos públicos, e não privados (art. 198, parágrafo 1º, da Constituição Federal).
Trata-se de uma escolha política que distorce o comando constitucional que atribui ao Estado o dever de promoção da saúde. Criou-se, por lei, e ao contrário do texto constitucional, uma extensão descabida de uma obrigação que não encontra sequer fundamentos consistentes na mensagem de veto elaborada pela Presidência da República.
Note-se, nesse sentido, que a própria mensagem de veto incorre em nítida contradição. Isso porque justifica a necessidade de efetividade do preceito constitucional de atendimento integral das ações e serviços públicos na transferência ao ente privado deste dever que cabe ao Estado[1].
A deturpação da vontade democrática emanada do Congresso Nacional não apenas eiva de inconstitucionalidade o novo marco legal das pesquisas clínicas, como eleva ao patamar de lei uma omissão que já existia na Resolução RDC 38/13 da Anvisa.
Esta norma, de natureza infralegal, havia inaugurado aos particulares o instituto da obrigação civil perpétua no direito da saúde. De todo modo, permitia discussões acerca da efetiva extensão da obrigação de fornecimento gratuito do medicamento pós-estudo, especialmente no caso de doenças raras, o que, imaginava-se, seria esclarecido com o texto enviado para sanção presidencial. Não foi o que ocorreu, no entanto. E o sinal emitido aos pesquisadores foi o de que o país poderia ser mais estável para o fomento científico.
O que a mensagem de veto não diz, mas é possível depreender-se, é a verdadeira motivação que o ensejou. E ela é de natureza econômica. Após a concessão do registro sanitário do medicamento pesquisado pela Anvisa, e a sua disponibilização comercial a partir da fixação de seu preço pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), inicia-se um período em que ele não está, de imediato, disponível no SUS.
Isso porque o medicamento precisa passar por um processo para a sua inclusão (incorporação) no SUS, cuja decisão cabe ao Ministério da Saúde, assessorado pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec). O processo é usualmente moroso. E nos casos de incorporação de medicamentos para o tratamento de doenças raras e ultrarraras ele é ainda mais demorado. Há um motivo velado para isso: estes medicamentos são de alto custo.
O Ministério da Saúde não possui interesse em incorporá-los ao SUS, em razão do seu impacto orçamentário, sendo preferível relegar o fornecimento destes medicamentos para os casos específicos em que houver a propositura de ações judiciais pelos pacientes, visando obrigar o Estado a fornecê-los.
Nesse contexto, o veto presidencial parece ter um claro objetivo: blindar o Estado de eventuais ações judiciais que o obrigariam a fornecer o medicamento no interregno entre a aprovação do seu registro sanitário e a sua incorporação no SUS. O mecanismo para tanto é forçar a transferência desse dever constitucional ao pesquisador, sob o pretexto de não deixar o paciente desamparado após a conclusão do estudo clínico. A manobra é engenhosa e busca induzir a erro a opinião pública.
É preciso dar a nomenclatura apropriada a esta imposição. Trata-se de obrigação civil de natureza vitalícia. E é difícil identificar outra obrigação de natureza perpétua no Brasil. No ordenamento jurídico, há exemplos de direitos e obrigações que sofrem limitação pelo transcurso temporal, como direitos autorais e de propriedade intelectual e obrigações de Direito de Família.
Em outras esferas ainda mais sensíveis, como matérias de Direito Penal, há clara orientação em sentido contrário às perpetuidades. Ora, se mesmo em temas que permeiam a ordem pública — pilar basilar da República — as responsabilidades não são perpétuas, não há razoabilidade em se transferir ao patrocinador um ônus desproporcional aos benefícios que ele obtém, e aos que proporciona para coletividade, ao realizar uma pesquisa clínica no país.
Em realidade, o patrocinador deveria receber estímulos e incentivos, e dispor de maior segurança jurídica, na medida em que investe massivamente para o incremento da saúde da população, o que traz economia ao Erário no longo prazo, fomentando pesquisas para o impulso das ciências da vida.
O veto se revela ainda mais problemático em relação aos estudos para a pesquisa de tratamentos de doenças ultrarraras. Estas pesquisas gozavam de limitação de 5 anos de fornecimento pós-registro, por força do art. 3 parágrafo 1º, da Resolução CNS 563/17[2]. Com o veto, há o sério risco de que novas interpretações sejam dadas, trazendo ainda mais instabilidade regulatória, afastando novos estudos nesse campo.
Há, ainda, importante pergunta sem resposta acerca da obrigação de fornecimento de medicamentos para estudos já em curso ou encerrados. Estes casos deveriam seguir o enunciado do art. 33 inciso VII[3], na eventualidade destas terapias serem incorporadas no SUS, ou, como alguns defendem, seria mantida ao patrocinador do estudo a obrigação civil perpétua? O debate não é simples. E a discussão aqui apresentada não tenciona fulminar os direitos dos participantes de pesquisas clínicas.
Estes voluntários aceitaram participar de estudos pioneiros em prol da ciência, e na maior parte das vezes vivem sem a esperança de melhoria de sua qualidade de vida, ou pior, com prognósticos terríveis de evolução de seus quadros clínicos. Não anseiam, portanto, garantias perpétuas: almejam que a pesquisa científica possa ocorrer no país e, assim, lhes viabilizar qualidade de vida de forma digna.
O que se propõe é que o recurso que seria dispendido para o fornecimento da terapia de forma gratuita e vitalícia, mesmo após a sua disponibilização comercial (quando esta obrigação deveria ser, a rigor, do Estado), seja aplicado para financiar novas pesquisas. Estes novos estudos trariam benefícios para a ciência e a indústria nacional e, principalmente, melhorariam a saúde e a qualidade de vida dos pacientes brasileiros.
Muito se fala do custo de inovar, mas pouco se discute o fardo da ausência de inovação científica no país. Quanto o mundo teria perdido se outros países impusessem a mesma obrigação perpétua? Terapias hoje tidas como consolidadas poderiam nunca ter sido descobertas, caso os pesquisadores e patrocinadores dos países desenvolvedores tivessem de suportar obrigações similares.
Talvez esta seja uma das razões pela qual o Brasil, possuidor de tantas riquezas naturais, biodiversidade e quadros científicos de destaque atuando no exterior, tenha repertório tímido na criação de terapias revolucionárias na área da saúde, comparativamente a países como os Estados Unidos da América e diversos integrantes da União Europeia.
Há, todavia, uma última possibilidade de revisão desta conjuntura. O veto da Presidência da República está sob escrutínio do Congresso Nacional. Ele deverá ser avaliado até o dia 28 de junho, para não sobrestar a pauta. É fundamental, portanto, que este debate prossiga até esta deliberação, com ampla participação e discussões técnicas sobre estas questões que não são triviais.
[1] “Portanto, para conferir efetividade ao preceito constitucional de atendimento integral das ações e serviços públicos de saúde, o medicamento experimental deve continuar a ser fornecido, aos participantes de pesquisa, independentemente de sua disponibilidade comercial pela iniciativa privada”.
[2] Art. 3º Nas pesquisas em doenças ultrarraras, o patrocinador deve se responsabilizar e assegurar a todos os participantes de pesquisa ao final do estudo, o acesso gratuito aos melhores métodos profiláticos, diagnósticos e terapêuticos que se demonstraram eficazes pelo prazo de cinco anos após obtenção do registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
§1º No caso de medicamentos, o prazo de 5 (cinco) anos será contado a partir da definição do preço em reais na Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED).
[3] “Art. 33. O fornecimento gratuito do medicamento experimental no âmbito do programa de fornecimento pós-estudo poderá ser interrompido, mediante submissão de justificativa ao CEP, para apreciação, apenas em alguma das seguintes situações:
(…)
VII – disponibilidade do medicamento experimental na rede pública de saúde”.