O Supremo Tribunal Federal tem cassado dezenas de decisões da Justiça do Trabalho que haviam reconhecido a existência factual de relação de emprego em contratos formalmente celebrados com pessoas jurídicas constituídas por trabalhadores para prestação de serviço pessoal, de forma continuada e subordinada. Nossa corte constitucional tem entendido que estas decisões estariam afrontando os precedentes da corte que declararam a constitucionalidade de leis que ampliaram e afirmaram a possibilidade de terceirização de atividade-fim.
Esses julgamentos do STF têm despertado muita controvérsia na doutrina trabalhista e constitucional, como também vêm suscitando muitos debates a respeito de seus possíveis efeitos jurídicos deletérios sobre o mercado de trabalho e sobre a arrecadação do INSS e da Receita Federal.
Não pretendemos nos ater aqui aos inúmeros problemas hermenêuticos que envolvem o tema, como a falta de estrita aderência do fenômeno “pejotização” aos precedente sobre terceirização (Tema 725), o uso controverso da reclamação para análise de provas já apreciadas e esgotadas na jurisdição trabalhista ordinária ou a aparente desconsideração de princípios fundamentais do direito do trabalho nas decisões proferidas em reclamações constitucionais, como aqueles sobre o caráter imperativo das normas de ordem pública, o postulado da primazia da realidade sobre a forma ou a natureza assimétrica das relações laborais.
O que nos preocupa, dentre outras consequências já mencionadas que podem resultar desta jurisprudência em questão, são os riscos iminentes aos direitos sociais constitucionais das trabalhadoras mulheres “pejotizadas”.
Inicialmente é preciso considerar que as desigualdades que afetam as mulheres no mercado de trabalho não diferem, na sua essência, em relação às variantes renda, formação educacional e raça. Todas as mulheres, independentemente de sua posição econômica e social, recebem menos do que os homens e estão sujeitas a assédio sexual e comportamento misógino no local de trabalho. Todas as mulheres são passíveis de sofrer restrições laborais e discriminações em razão da maternidade.
É evidente que quanto mais precária a posição sócio-econômica da mulher no mercado de trabalho (por exemplo, mulheres negras com poucos anos de formação educacional em atividades terceirizadas), maior será a sua fragilidade diante das históricas desvantagens e discriminações que afetam sua condição no mercado laboral. A experiência da jurisdição trabalhista revela, no entanto, que mesmo as mais gabaritadas profissionais, com educação superior e salários altos, estão sujeitas a violações de seus direitos constitucionais de igualdade perante a lei e de garantia de direitos trabalhistas duramente conquistados.
Imaginemos o caso de uma médica contratada como pessoa jurídica em um hospital privado de renome para cumprir plantões ou de uma advogada recém formada admitida como “associada” em um grande e abastado escritório de advocacia. Estarão elas em condição de negociar valores semelhantes pagos aos profissionais do sexo masculino?
Estarão elas, em sua condição de “pessoa jurídica”, isentas de sofrerem assédio ou discriminação em razão da maternidade? E que dizer, então, de profissionais de menor qualificação e salário que igualmente já sentem os efeitos devastadores da pejotização, como cuidadoras de idosos, conforme se percebe de denúncias que se avolumam no Ministério Público?
Caso violados os direitos sociais das trabalhadoras previstos nos art. 7º da Constituição, poderiam elas buscar a tutela jurisdicional do Estado brasileiro? Na linha jurisprudencial que o STF vem adotando, essas trabalhadoras seriam meras “entidades empresariais”, que estariam negociando contratos civis de forma horizontal com os “tomadores de serviço”, insuscetíveis, portanto, de invocação de direitos sociais previstos para a classe trabalhadora. Esse não parece ser um caminho promissor para a efetividade das normas constitucionais que afirmam a igualdade entre homens e mulheres no mercado de trabalho.
Os tribunais brasileiros não podem fechar os olhos à realidade da mulher trabalhadora no patriarcal mercado de trabalho brasileiro, especialmente quando o próprio CNJ (Resolução 492/2023) editou norma que obriga os magistrados a julgar os conflitos judiciais com perspectiva de gênero.
Acreditar que trabalhadoras “pejotizadas” devem ser tratadas como entidades empresariais regidas apenas pelo direito civil seria uma clara violação a essa diretiva, como também aos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil decorrentes da ratificação da Convenção 111 da OIT, da Convenção das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Decreto 4.377/2022) e da Convenção Interamericana de Direitos Humanos.
A “pejotização” do mercado de trabalho deve ser objeto de reflexão mais aprofundada, que leve em conta seus efeitos deletérios na proteção ao emprego, na garantia de benefícios previdenciários e no tratamento igualitário de mulheres e homens nas relações laborais.